Um amigo meu me contou que a novidade que tem no
Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz. Um local fantástico, no tal
Brejo da Cruz é onde as coisas mais inacreditáveis acontecem e lá ninguém acha
nada fora do normal, nem mesmo o fato de alguém se alimentar de luz.
Sua atmosfera mais extraordinária tem um tom
esverdeado, quase sem intensidade, capaz de se assemelhar ao fim da claridade,
no anoitecer, quando todas as cores se recolhem e esmorecem à espera do breu,
pasteurizando todas as silhuetas e tornando chã toda a topografia. É por esta
razão que quase não dá pra perceber exatamente quem são esses seres que
deambulam, a todo momento, pelas ruas do Brejo da Cruz.
Uns parecem cantar, outros dançam maracatus.
Muitos são sanfoneiros, outros são alfaiates com seus panos escarlates, enrolados no
próprio corpo, arrastando pelo chão. Tem uns que viram Jesus, enquanto outros
se curam em longos passeios nus. E tem ainda os bombeiros, os faxineiros e os
jardineiros, que andam sempre juntos em rimas improváveis, cultivando os seus
sufixos práticos.
O que é estranho mesmo, diz esse meu amigo, é
que depois de uma certa idade, vagueando pelas ruas, pelos museus, entrando e
saindo de igrejas e bares, muitos nem se lembram que existe um Brejo da Cruz,
que eram crianças e que comiam luz.
De um tempo pra cá eu soube que a coisa tem
mudado muito, degenerando o próprio Brejo da Cruz e seus encantos poéticos
musicais existenciais. É que alguns outros seres, infortunadamente, têm se
especializado em se misturar na multidão, habilmente. Sua capacidade é imensa e
eles se disfarçam tão bem que ninguém pergunta de onde essa gente vem. Os
poucos que são notados simulam armas nas mãos, facões na cintura e pedras nos
bolsos, se revelando prontos pra qualquer luta física, o que nada têm a ver com
a essência do Brejo da Cruz.
Quando se debatem ou discutem com os seres
imaginários à sua volta, despejam neles toda a sua munição, catando nos
escombros do seu próprio ser paus e pedras, junto com palavras escolhidas do
alforje de mágoas, sangue e ódios que eles carregam. Não se utilizam das
rimas, das músicas, das cantorias e nem mesmo dos sufixos. Não dançam, não
contemplam as árvores, as flores, nem as obras dos museus, tampouco percebem as
portas das igrejas abertas e convidativas.
Em alguns casos esses seres chegam ao cúmulo de
pedir a prisão, a deportação de outras gentes pra Angola ou pra Guiné e exigem
mandar de volta o comboio da Penha, despachando o populacho pra favela ou pra
Benguela, tudo isso pra preservar o seu mar turquesa à lá Istambul.
Sol. Sol. A culpa deve ser do sol. Que
bate na moleira, o sol. O mesmo sol que lava diariamente as ruas e calçadas nas manhãs
iluminadas do Brejo da Cruz; que mantém o seu universo surreal vivo e ávido por
novas manifestações, por novas canções, por novas digestões de luz, a matéria
prima da energia vital que cultiva a saudade de quem já esteve por lá e quer o
Brejo da Cruz de volta à sua origem, sem armas, sem ódio, sem ranger de dentes
e sem paus e pedras.
Um Brejo da Cruz com seus cegos tocando blues.
Isso sim. Com seus bilheteiros, baleiros e garçons. Onde os pintores, os
poetas, os filósofos, os atores e os fotógrafos são os responsáveis pelas
paisagens, pelos pores do sol de cada dia, pelo mar incondicionalmente límpido
e público e por todas as árvores, plantas e flores em seus movimentos diários e
suaves do leste até o oeste. Tudo por lá parece meio louco, sim. Mas só parece.
Pois o tal Brejo é o berço de onde todos nós
viemos, o braço que forma o colo em que todos nós fomos embalados, e dormimos e
acordamos no meio da noite. O Brejo da Cruz é a nossa civilidade, o respeito, a
cortesia com o outro, as boas maneiras e a fraternidade humana. É a nossa
escola com o nosso professor preferido dentro da sala de aula.
É ver com o coração. Reparar o defeito do outro
lhe estendendo a mão. O Brejo da Cruz é isso. E mesmo que a gente lembre pouco
ou nada dele, ele está lá, em algum lugar guardado em nós. Muitos se esqueceram
das suas ruas e becos, do seu picadeiro e do seu trapézio, das suas paredes em
telas coloridas, dos seus meninos ficando azuis. E muitos já nem se lembram que
eram crianças e que comiam luz.
Para a minha amiga Ana Viegas.