Confiar mesmo, assim totalmente, eu não
confiava. Mas uma viagem cautelosa não ia abalar as estruturas da parceria que
eu cultivava com o meu Fiat 147, ano 82, verde claro, apelidado carinhosamente
de Kid.
De manhã bem cedinho eu já comecei a colocar as
coisas no bagageiro do teto, as malas lá atrás e ia revisando mentalmente as
providências de praxe que eu tinha tomado na véspera, de encher os pneus, ver o
nível do óleo, o limpador de para-brisa e outras coisas. Enquanto arrumava as bagagens
eu lembrava de cada item e ia checando se estava ok.
Eu nunca tinha ido a São Lourenço, mas meus
sogros adoravam aquela estação de águas, o parque, e minha esposa relembrava da
sua adolescência naquela cidade e das vezes que tinha passado férias lá. Então,
nós íamos começar nossas férias com aquela viagem, muito insistida por todos. Eu
tinha 20 e poucos anos, meus sogros ambos mais de 70 e, pra contrabalançar, meu
filho Daniel contava uns dois anos de idade.
Entramos todos no Kid e minha sogra disse que
uma boa viagem precisa de fé e de sorte. Aliás, tudo na vida. Então, que a
sorte ela desejava pra todos nós e a fé, deixasse por conta dela, pois que ia
pedir a Santa Rita uma bela e segura viagem, afastando todos os perigos, que
assim seja!
No começo eu estava cauteloso com a direção,
tendo meu sogro logo ali no banco ao meu lado. É que eu não queria correr ou
fazer algo reprovável durante a viagem, algo que pudesse causar qualquer tipo
de insegurança, afinal estava toda a família na estrada e eu não queria ser
imprudente.
Um pouco antes de entrar na serra eu perguntei
pra ele:
– E então, estou dirigindo bem? Tá tudo ok?
E ele respondeu:
– Tudo ok. Você só dirige muito devagar. Quando
eu vinha pra São Lourenço, antigamente, eu andava bem mais rápido. Inclusive
aqui na serra eu fazia toda ela em terceira marcha com o meu Chevrolet. Mas tá
bom assim também.
Eu nunca dirigi rápido mesmo, mas confesso que
me surpreendi com aquela resposta, até porque eu estava cuidando justamente com
eles, mais velhos, pra não intranquilizar a viagem, e agora me dava conta de estar
errando na mão, ou no pé, do acelerador.
O problema é que assim que eu comecei a pisar
forte na serra, pegando embalo nas subidas mais íngremes pra que o carro não
forçasse muito o motor, eu comecei a ouvir um barulho na frente, mais do meu
lado, o do motorista, que me preocupou. Pensei que era na roda. Depois achei
que podia ser o ferrinho que segura o capô que estava fora do lugar e por isso
vibrava. Só que o barulho ia e vinha e eu fui levando sem falar nada com
ninguém pra não inquietar.
Na parada pro lanche eu fui dar uma olhada. Abri
o compartimento da frente e da mala, mas não vi nada de errado. Bem, não há de
ser nada, pensei. Se tem mesmo fé e sorte nesta bagaça, vai dar tudo certo.
Só que o resto da viagem foi preocupante. Eu
estava até com dor nos ombros de tanto que eu segurava o volante com força, a
cada vez que ouvia algo. E o barulho continuava indo e vindo sem que eu
soubesse o que poderiam ser aqueles estalos que entravam pela janela e iam direto até
o meu ouvido.
Finalmente chegamos a São Lourenço. Um dia ótimo
de sol, uma casa ótima que a gente tinha alugado, pertinho do parque das águas,
uma cozinha ótima, com as comidinhas sendo arrumadas e... eu com aquela dor no
ombro que só piorava.
Depois de toda a arrumação da casa, das
bagagens, do almoço; depois que todos foram tirar um cochilo eu fui rodar a cidade
à procura de um mecânico, claro. Eu só pensava na volta, dali a uns dias, e em como
seria dirigir com aquele barulho de novo. Se fosse algo grave teria que ter
tempo pra consertar e eu não queria passar aqueles dias pensando na volta e no
barulho incômodo.
Assim que entrei na mecânica um senhor de
macacão veio na minha direção e apontou pra placa, do Rio de Janeiro.
– Pois não, carioca, a que devemos esta singela
visita?
Aflito, eu contei tudo. Do barulho, dos estalos,
do carro carregado, do ferrinho do capô, da geral que eu fiz antes de pegar a
estrada e ele só coçava a cabeça enquanto eu falava.
– Olha, se o rapaz diz que tomou todas as
providências antes da viagem, aí fica ruim pra eu tentar pensar em alguma coisa
errada aqui. Mas, vamos ver. Pode ser um monte de coisa este tipo de barulho.
No momento em que ele veio com uma chave de roda
e apontou o parafuso a chave caiu da sua mão.
– Minhanossinhora, essa roda tá completamente
solta – disse com o seu sotaque mineiro de espanto – Ocê veio do Rio de
Janeiro até aqui com essa roda solta assim? Rapaz, você teve muita sorte, viu?
Foi então que eu me lembrei que quando eu fui
avaliar os pneus, o rapaz da loja disse que era preciso trocar as rodas da
frente de lugar, pois que o rodízio era bom pra que elas se gastassem por igual.
Na verdade ele apertou as rodas enquanto o carro estava suspenso e depois,
provavelmente, se esqueceu de apertar até o final, quando o carro já estava no
chão. O filme veio todinho na minha cabeça.
O mecânico continuava espantado apertando todas
as rodas e eu perto dele explicando, contrariado, que tomei todos os cuidados
e, mesmo assim, viajei com alto risco de ter um acidente.
Ele coçou a cabeça de novo, jogou a chave de
rodas na mesa, cheia de outras ferramentas e disse:
– A minha mãe é que estava certa. Ela dizia que
tudo na nossa vida precisa de um pouco de sorte e um pouco de fé. O carioca
teve as duas coisas hoje.
Eu só sei que naquela tarde eu voltei pra casa e
fui direto na geladeira pegar um enorme pedaço de bolo de abacaxi, enquanto
todos ainda dormiam. Eu comia o bolo na varanda e lembrava da viagem, o tempo
todo aquele barulho, e só me vinham à cabeça as palavras sorte e fé da minha
sogra.
A vida nos afastou de repente e eu tenho a
sensação de não ter agradecido o suficiente à dona Anita. Pelos bolos de
abacaxi. Pela sorte. Pela fé.
Que ela esteja com Deus!