terça-feira, 27 de novembro de 2018

A Sorte e a Fé


Confiar mesmo, assim totalmente, eu não confiava. Mas uma viagem cautelosa não ia abalar as estruturas da parceria que eu cultivava com o meu Fiat 147, ano 82, verde claro, apelidado carinhosamente de Kid.
De manhã bem cedinho eu já comecei a colocar as coisas no bagageiro do teto, as malas lá atrás e ia revisando mentalmente as providências de praxe que eu tinha tomado na véspera, de encher os pneus, ver o nível do óleo, o limpador de para-brisa e outras coisas. Enquanto arrumava as bagagens eu lembrava de cada item e ia checando se estava ok.
Eu nunca tinha ido a São Lourenço, mas meus sogros adoravam aquela estação de águas, o parque, e minha esposa relembrava da sua adolescência naquela cidade e das vezes que tinha passado férias lá. Então, nós íamos começar nossas férias com aquela viagem, muito insistida por todos. Eu tinha 20 e poucos anos, meus sogros ambos mais de 70 e, pra contrabalançar, meu filho Daniel contava uns dois anos de idade.
Entramos todos no Kid e minha sogra disse que uma boa viagem precisa de fé e de sorte. Aliás, tudo na vida. Então, que a sorte ela desejava pra todos nós e a fé, deixasse por conta dela, pois que ia pedir a Santa Rita uma bela e segura viagem, afastando todos os perigos, que assim seja!
No começo eu estava cauteloso com a direção, tendo meu sogro logo ali no banco ao meu lado. É que eu não queria correr ou fazer algo reprovável durante a viagem, algo que pudesse causar qualquer tipo de insegurança, afinal estava toda a família na estrada e eu não queria ser imprudente.
Um pouco antes de entrar na serra eu perguntei pra ele:
– E então, estou dirigindo bem? Tá tudo ok?
E ele respondeu:
– Tudo ok. Você só dirige muito devagar. Quando eu vinha pra São Lourenço, antigamente, eu andava bem mais rápido. Inclusive aqui na serra eu fazia toda ela em terceira marcha com o meu Chevrolet. Mas tá bom assim também.
Eu nunca dirigi rápido mesmo, mas confesso que me surpreendi com aquela resposta, até porque eu estava cuidando justamente com eles, mais velhos, pra não intranquilizar a viagem, e agora me dava conta de estar errando na mão, ou no pé, do acelerador.
O problema é que assim que eu comecei a pisar forte na serra, pegando embalo nas subidas mais íngremes pra que o carro não forçasse muito o motor, eu comecei a ouvir um barulho na frente, mais do meu lado, o do motorista, que me preocupou. Pensei que era na roda. Depois achei que podia ser o ferrinho que segura o capô que estava fora do lugar e por isso vibrava. Só que o barulho ia e vinha e eu fui levando sem falar nada com ninguém pra não inquietar.
Na parada pro lanche eu fui dar uma olhada. Abri o compartimento da frente e da mala, mas não vi nada de errado. Bem, não há de ser nada, pensei. Se tem mesmo fé e sorte nesta bagaça, vai dar tudo certo.
Só que o resto da viagem foi preocupante. Eu estava até com dor nos ombros de tanto que eu segurava o volante com força, a cada vez que ouvia algo. E o barulho continuava indo e vindo sem que eu soubesse o que poderiam ser aqueles estalos que entravam pela janela e iam direto até o meu ouvido.
Finalmente chegamos a São Lourenço. Um dia ótimo de sol, uma casa ótima que a gente tinha alugado, pertinho do parque das águas, uma cozinha ótima, com as comidinhas sendo arrumadas e... eu com aquela dor no ombro que só piorava.
Depois de toda a arrumação da casa, das bagagens, do almoço; depois que todos foram tirar um cochilo eu fui rodar a cidade à procura de um mecânico, claro. Eu só pensava na volta, dali a uns dias, e em como seria dirigir com aquele barulho de novo. Se fosse algo grave teria que ter tempo pra consertar e eu não queria passar aqueles dias pensando na volta e no barulho incômodo.
Assim que entrei na mecânica um senhor de macacão veio na minha direção e apontou pra placa, do Rio de Janeiro.
– Pois não, carioca, a que devemos esta singela visita?
Aflito, eu contei tudo. Do barulho, dos estalos, do carro carregado, do ferrinho do capô, da geral que eu fiz antes de pegar a estrada e ele só coçava a cabeça enquanto eu falava.
– Olha, se o rapaz diz que tomou todas as providências antes da viagem, aí fica ruim pra eu tentar pensar em alguma coisa errada aqui. Mas, vamos ver. Pode ser um monte de coisa este tipo de barulho.
No momento em que ele veio com uma chave de roda e apontou o parafuso a chave caiu da sua mão.
– Minhanossinhora, essa roda tá completamente solta – disse com o seu sotaque mineiro de espanto ­– Ocê veio do Rio de Janeiro até aqui com essa roda solta assim? Rapaz, você teve muita sorte, viu?
Foi então que eu me lembrei que quando eu fui avaliar os pneus, o rapaz da loja disse que era preciso trocar as rodas da frente de lugar, pois que o rodízio era bom pra que elas se gastassem por igual. Na verdade ele apertou as rodas enquanto o carro estava suspenso e depois, provavelmente, se esqueceu de apertar até o final, quando o carro já estava no chão. O filme veio todinho na minha cabeça.
O mecânico continuava espantado apertando todas as rodas e eu perto dele explicando, contrariado, que tomei todos os cuidados e, mesmo assim, viajei com alto risco de ter um acidente.
Ele coçou a cabeça de novo, jogou a chave de rodas na mesa, cheia de outras ferramentas e disse:
– A minha mãe é que estava certa. Ela dizia que tudo na nossa vida precisa de um pouco de sorte e um pouco de fé. O carioca teve as duas coisas hoje.
Eu só sei que naquela tarde eu voltei pra casa e fui direto na geladeira pegar um enorme pedaço de bolo de abacaxi, enquanto todos ainda dormiam. Eu comia o bolo na varanda e lembrava da viagem, o tempo todo aquele barulho, e só me vinham à cabeça as palavras sorte e fé da minha sogra.
A vida nos afastou de repente e eu tenho a sensação de não ter agradecido o suficiente à dona Anita. Pelos bolos de abacaxi. Pela sorte. Pela fé.
Que ela esteja com Deus!