segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A Fila


Normal aquele restaurante cujos clientes fazem fila na porta para entrar. Alguns até gostam, pois dá um certo status, eleva o conceito do chef de cozinha e de sua equipe.
Ao lado do prédio onde eu trabalhava, no Centro do Rio de Janeiro, uma fila diferente se formava, também num restaurante. Ela acontecia nos fundos do estabelecimento, em uma pequena travessa, uma rua de pedestres quase sem movimento. Mas o mais curioso é que era uma fila de não clientes. Moradores de rua, sem teto, vagantes, desempregados, guardadores de carros, essa era a condição dos integrantes daquela fila que tinha hora e local pra acontecer.
Uma fila, afinal, que tinha tudo pra depreciar o restaurante, a cozinha e o chef, mas que causava em todos, principalmente clientes, justamente o contrário, ou seja, uma ótima impressão.
Por volta das 2 da tarde, esses não fregueses, que também se tornavam clientes em certo sentido, começavam a chegar. Organizados, ficavam certinho enfileirados na nesga de sombra que a rua recebia e ali, com seus potes e recipientes, quase todos de plástico, esperavam a hora exata de receber aquilo que o restaurante oferecia: a comida que sobrou do almoço.
O que se via – aliás, o que eu via da janela do trabalho – todas as tardes, era a chegada de dois funcionários do restaurante, por volta das 3 horas. Eles traziam uma espécie de bandeja bem grande e ali eles iam enchendo os vasilhames do pessoal na fila. Tudo sem confusão, cada um respeitando o lugar do outro e eu notava que alguns até se conheciam e conheciam também os próprios ajudantes de cozinha pelo nome.
No início, aquela cena incomodava um pouco quem passava pelo local. Para a maioria das pessoas não era mesmo bom de ver, ou constatar, que tinha gente com fome bem ali ao seu lado, na esquina próxima, no caminho por onde muitos passavam e nem lhes notava a presença, quanto mais da fome que havia.
Somente com um segundo olhar, o olhar da compaixão, é que se tocavam da generosidade daquele restaurante e, a seguir, até mesmo pelo aspecto das pessoas na fila, intuíam a dificuldade que era viver numa cidade grande, com cada vez menos oportunidades para a população mais pobre.
O comentário era geral. Depois de um tempo todos falavam sobre a iniciativa do restaurante e lembro inclusive de ver, de novo pela minha janela, pessoas que iam até a fila levar roupas e outros objetos para doar ao pessoal que aguardava a comida chegar. Acho que o choque causado pela imagem forte da fome coletiva ia se diluindo aos poucos e as pessoas iam percebendo que podiam ajudar também, fazer alguma coisa, algo semelhante ao gesto do restaurante. Lá no trabalho mesmo teve muita gente que se sentiu assim e doou roupas e casacos, revelando que, diante daquilo tudo, ficava fácil se permitir alguma fraternidade.
Não sei quanto tempo se passou, mas, num certo momento, naquele pedaço do Centro, outros restaurantes vizinhos passaram a fazer a mesma coisa. Primeiro porque sabiam que eles também tinham sobras de comida e, melhor do que ir pro lixo, era doar pra alguém antes que estragasse. E depois, porque algo mais significativo surgiu, pois se criou um certo conceito, algo tácito, sutil mesmo, entre a clientela, de que aquele restaurante que não tinha a tal fila nos fundos, provavelmente tinha um dono sovina, ou, pior, reaproveitava a comida que sobrava, o que não era, definitivamente, uma reputação nada positiva.
Por sua vez, quem doava passava a imagem, apenas a imagem, já que não se podia provar nada, de que os seus pratos eram sempre fresquinhos, daquele mesmo dia, evitando que surgisse qualquer sombra de requentação no seu horizonte alimentício.
Na dúvida, todos os restaurantes do Centro pouco a pouco passaram a organizar as suas próprias filas, as suas próprias doações e, ao fim, constataram que aquela boa e fraternal ação era responsável até por uma diminuição significativa do lixo orgânico que eles produziam dali em diante.
Quando eu ando por Florianópolis e reparo as pessoas, principalmente perto dos restaurantes, pedindo ajuda aos passantes para comer, fico avaliando a possibilidade de ir falar com os donos ou gerentes desses estabelecimentos e contar essa história do Rio.
Fico pensando que eles deveriam também se tocar e saber mais sobre doações da comida excedente, sobre fraternidade, humanidade. E fico imaginando que não seria tão difícil convencê-los se mais pessoas entendessem, partilhassem a ideia e defendessem esse ponto de vista sempre que a oportunidade surgisse, ajudando a pavimentar um caminho oposto do escolhido por aqueles que tudo têm e não dividem com alguém.
Bem, quem sabe com mais gente se engajando ao ler essa crônica...


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O Beijo


Enquanto o rapaz da loja de reprografia encadernava o material que eu tinha levado, eu fui dar uma volta pelo shopping.
Shopping não é, nunca foi, e nunca será a minha praia. Mas digamos que em dias quentes, com o sol lá fora, ar-condicionado e um sorvete ali dentro, a coisa fica um tanto mais suportável.
Nessas ocasiões, entretanto, eu faço questão de fechar bem os ouvidos pra não ser surpreendido com coisas desagradáveis ao espírito. Sempre que soam perto de mim as conhecidas frases tacanhas, as observações eivadas de preconceito, vindas de uma gente ultrapassada em todos os sentidos, eu nem preciso olhar pros lados pra identificar seus autores, pois é uma questão que faz saltar aos olhos. E, definitivamente, eu prefiro não ouvir nada assim a perder tempo e espaço no meu cérebro, que já acusa o parco espaço para armazenamento. Eu até ouço quando é inevitável, mas, logo em seguida, trato de deletar até da lixeira, pra apagar por completo.
Então, nesta manhã, esperando pela encadernação, eu estava à procura de um banco vazio, sem ninguém, uma cadeira, um espaço qualquer que eu pudesse sentar um pouco, em um corredor daqueles do shopping. Quando me dei conta lá estava eu sentado na frente de uma livraria.
Os livros, nesta altura do nosso país, têm repelido bem as mentes obtusas. Aliás, tuitam por aí até que livro é coisa de comunista e que não demora nadinha pra começarem a queimar uma boa quantidade deles em uma praça qualquer da cidade. Talvez queimem junto até algumas bandeiras do Japão que, com os dentes a ranger, foram apontadas recentemente como bandeiras do Brasil, consagradas ao comunismo. Eu mesmo só acreditei porque vi o vídeo da pantomima.
Bem, mas apesar de todo este meu cuidado, passados uns 15 minutos chegou um sujeito com o filho pequeno. Ficou por ali com o menino, olhando umas vitrines e deu a entender que devia estar com a esposa por perto, dentro de alguma loja, enquanto ele tomava conta da criança. Sentava, levantava, corria atrás um do outro, pegava no colo, dizia que a mãe já estava voltando e prometia uma pizza pra dali a pouco, contando com o bom comportamento do rebento.
Nesse momento, uma turminha de escolares adolescentes chegou à frente da livraria e se aglomerou diante de uma capa que eu não saberia dizer qual é. Apontavam o livro, brincavam entre si, teclavam no celular, mostravam imagens uns para os outros e falavam muito, se abraçavam, puxavam as mochilas, faziam carinhos e arrumavam os cabelos e os acessórios deles. Uma festinha discreta e bem comportada que me pareceu espremida no pequeno intervalo entre as aulas, que logo recomeçariam.
Em poucos instantes o grupo desapareceu no fim do corredor e eu voltei à minha espera pela encadernação, olhando algumas mensagens no celular e mirando o pouco que eu conseguia decifrar das dezenas de títulos daquelas ofertas literárias à minha frente.
O pai com o seu filho, que enfim se cansou de correr, veio sentar do meu lado e alguma coisa me dizia que eu tinha dois segundos pra me salvar.
– Você viu?
– Como?
– Você viu as meninas?
– Desculpe, não entendi – disse eu, já lamentando por dentro ter aceitado aquela conversa.
– Duas meninas se beijando. Naquele pessoal que passou aqui. Tinha duas meninas que se beijaram bem aqui na frente dessa vitrine, no meio do corredor. Cara, eu vou te falar, é por isso que eu até evito trazer meu filho ao shopping.
Sem saber o que dizer, ou por onde começar, eu fiquei calado.
– As pessoas se sentem mal vendo esse tipo de coisa. Você está com o seu filho brincando e de repente, isso. Umas meninas que não respeitam ninguém, nem o lugar público. Tudo bem que você não viu. Mas você não se sente incomodado com isso, não?
– Eu acho, sinceramente, que eu não tenho o direito de me sentir incomodado com um beijo. É isso! Até mais.
Enquanto eu me levantava pude perceber com o canto do olho que o sujeito ficou petrificado. Ele me olhava querendo argumentar, procurava algumas palavras pra responder, mas parece que não achava. Aí ele só me olhava e ficou assim, me acompanhando, até eu sumir na curva para as escadas rolantes.
Cada andar que subia eu pensava na vida daquele sujeito. Pensava na miserável mulher que tinha de conviver com ele, no coitado do filho que ia receber aquele tipo de educação, nos pais dele, nos amigos dele, nos colegas de trabalho, na descendência involuída que ele ia produzir para o mundo, mundo este, já hoje, bem à frente desses infortunados incomodados.
Tudo que pensa, que lê, que estuda, que aprende, que ensina, que propõe; tudo que solidariza, que fraterniza, que sensibiliza e que humaniza está incomodando as mentes incomodadas.
As mentes que temem. As mentes que mentem. As mentes que matam.
Esses moços, pobres moços.
Pobres incomodados... com o amor.