Normal aquele restaurante cujos clientes fazem
fila na porta para entrar. Alguns até gostam, pois dá um certo status, eleva o
conceito do chef de cozinha e de sua equipe.
Ao lado do prédio onde eu trabalhava, no Centro
do Rio de Janeiro, uma fila diferente se formava, também num restaurante. Ela
acontecia nos fundos do estabelecimento, em uma pequena travessa, uma rua de
pedestres quase sem movimento. Mas o mais curioso é que era uma fila de não
clientes. Moradores de rua, sem teto, vagantes, desempregados, guardadores de
carros, essa era a condição dos integrantes daquela fila que tinha hora e local
pra acontecer.
Uma fila, afinal, que tinha tudo pra depreciar o
restaurante, a cozinha e o chef, mas que causava em todos, principalmente clientes,
justamente o contrário, ou seja, uma ótima impressão.
Por volta das 2 da tarde, esses não fregueses,
que também se tornavam clientes em certo sentido, começavam a chegar.
Organizados, ficavam certinho enfileirados na nesga de sombra que a rua recebia
e ali, com seus potes e recipientes, quase todos de plástico, esperavam a hora
exata de receber aquilo que o restaurante oferecia: a comida que sobrou do
almoço.
O que se via – aliás, o que eu via da janela do
trabalho – todas as tardes, era a chegada de dois funcionários do restaurante,
por volta das 3 horas. Eles traziam uma espécie de bandeja bem grande e ali
eles iam enchendo os vasilhames do pessoal na fila. Tudo sem confusão, cada um
respeitando o lugar do outro e eu notava que alguns até se conheciam e
conheciam também os próprios ajudantes de cozinha pelo nome.
No início, aquela cena incomodava um pouco quem
passava pelo local. Para a maioria das pessoas não era mesmo bom de ver, ou
constatar, que tinha gente com fome bem ali ao seu lado, na esquina próxima, no
caminho por onde muitos passavam e nem lhes notava a presença, quanto mais da
fome que havia.
Somente com um segundo olhar, o olhar da
compaixão, é que se tocavam da generosidade daquele restaurante e, a seguir,
até mesmo pelo aspecto das pessoas na fila, intuíam a dificuldade que era viver
numa cidade grande, com cada vez menos oportunidades para a população mais
pobre.
O comentário era geral. Depois de um tempo todos
falavam sobre a iniciativa do restaurante e lembro inclusive de ver, de novo pela
minha janela, pessoas que iam até a fila levar roupas e outros objetos para
doar ao pessoal que aguardava a comida chegar. Acho que o choque causado pela
imagem forte da fome coletiva ia se diluindo aos poucos e as pessoas iam
percebendo que podiam ajudar também, fazer alguma coisa, algo semelhante ao
gesto do restaurante. Lá no trabalho mesmo teve muita gente que se sentiu assim
e doou roupas e casacos, revelando que, diante daquilo tudo, ficava fácil se
permitir alguma fraternidade.
Não sei quanto tempo se passou, mas, num certo
momento, naquele pedaço do Centro, outros restaurantes vizinhos passaram a
fazer a mesma coisa. Primeiro porque sabiam que eles também tinham sobras de
comida e, melhor do que ir pro lixo, era doar pra alguém antes que estragasse.
E depois, porque algo mais significativo surgiu, pois se criou um certo
conceito, algo tácito, sutil mesmo, entre a clientela, de que aquele
restaurante que não tinha a tal fila nos fundos, provavelmente tinha um dono
sovina, ou, pior, reaproveitava a comida que sobrava, o que não era,
definitivamente, uma reputação nada positiva.
Por sua vez, quem doava passava a imagem, apenas
a imagem, já que não se podia provar nada, de que os seus pratos eram sempre
fresquinhos, daquele mesmo dia, evitando que surgisse qualquer sombra de
requentação no seu horizonte alimentício.
Na dúvida, todos os restaurantes do Centro pouco
a pouco passaram a organizar as suas próprias filas, as suas próprias doações
e, ao fim, constataram que aquela boa e fraternal ação era responsável até por
uma diminuição significativa do lixo orgânico que eles produziam dali em
diante.
Quando eu ando por Florianópolis e reparo as
pessoas, principalmente perto dos restaurantes, pedindo ajuda aos passantes
para comer, fico avaliando a possibilidade de ir falar com os donos ou gerentes
desses estabelecimentos e contar essa história do Rio.
Fico pensando que eles deveriam também se tocar
e saber mais sobre doações da comida excedente, sobre fraternidade, humanidade.
E fico imaginando que não seria tão difícil convencê-los se mais pessoas
entendessem, partilhassem a ideia e defendessem esse ponto de vista sempre que
a oportunidade surgisse, ajudando a pavimentar um caminho oposto do escolhido
por aqueles que tudo têm e não dividem com alguém.
Bem, quem sabe com mais gente se engajando ao ler
essa crônica...