Enquanto o rapaz da loja de reprografia
encadernava o material que eu tinha levado, eu fui dar uma volta pelo shopping.
Shopping não é, nunca foi, e nunca será a minha
praia. Mas digamos que em dias quentes, com o sol lá fora, ar-condicionado e um
sorvete ali dentro, a coisa fica um tanto mais suportável.
Nessas ocasiões, entretanto, eu faço questão de
fechar bem os ouvidos pra não ser surpreendido com coisas desagradáveis ao
espírito. Sempre que soam perto de mim as conhecidas frases tacanhas, as
observações eivadas de preconceito, vindas de uma gente ultrapassada em todos
os sentidos, eu nem preciso olhar pros lados pra identificar seus autores, pois
é uma questão que faz saltar aos olhos. E, definitivamente, eu prefiro não
ouvir nada assim a perder tempo e espaço no meu cérebro, que já acusa o parco
espaço para armazenamento. Eu até ouço quando é inevitável, mas, logo em
seguida, trato de deletar até da lixeira, pra apagar por completo.
Então, nesta manhã, esperando pela encadernação,
eu estava à procura de um banco vazio, sem ninguém, uma cadeira, um espaço
qualquer que eu pudesse sentar um pouco, em um corredor daqueles do shopping. Quando
me dei conta lá estava eu sentado na frente de uma livraria.
Os livros, nesta altura do nosso país, têm
repelido bem as mentes obtusas. Aliás, tuitam por aí até que livro é coisa de
comunista e que não demora nadinha pra começarem a queimar uma boa quantidade
deles em uma praça qualquer da cidade. Talvez queimem junto até algumas
bandeiras do Japão que, com os dentes a ranger, foram apontadas recentemente
como bandeiras do Brasil, consagradas ao comunismo. Eu mesmo só acreditei
porque vi o vídeo da pantomima.
Bem, mas apesar de todo este meu cuidado,
passados uns 15 minutos chegou um sujeito com o filho pequeno. Ficou por ali
com o menino, olhando umas vitrines e deu a entender que devia estar com a
esposa por perto, dentro de alguma loja, enquanto ele tomava conta da criança.
Sentava, levantava, corria atrás um do outro, pegava no colo, dizia que a mãe
já estava voltando e prometia uma pizza pra dali a pouco, contando com o bom
comportamento do rebento.
Nesse momento, uma turminha de escolares
adolescentes chegou à frente da livraria e se aglomerou diante de uma capa que
eu não saberia dizer qual é. Apontavam o livro, brincavam entre si, teclavam no
celular, mostravam imagens uns para os outros e falavam muito, se abraçavam,
puxavam as mochilas, faziam carinhos e arrumavam os cabelos e os acessórios
deles. Uma festinha discreta e bem comportada que me pareceu espremida no
pequeno intervalo entre as aulas, que logo recomeçariam.
Em poucos instantes o grupo desapareceu no fim
do corredor e eu voltei à minha espera pela encadernação, olhando algumas
mensagens no celular e mirando o pouco que eu conseguia decifrar das dezenas de
títulos daquelas ofertas literárias à minha frente.
O pai com o seu filho, que enfim se cansou de
correr, veio sentar do meu lado e alguma coisa me dizia que eu tinha dois
segundos pra me salvar.
– Você viu?
– Como?
– Você viu as meninas?
– Desculpe, não entendi – disse eu, já
lamentando por dentro ter aceitado aquela conversa.
– Duas meninas se beijando. Naquele pessoal que
passou aqui. Tinha duas meninas que se beijaram bem aqui na frente dessa
vitrine, no meio do corredor. Cara, eu vou te falar, é por isso que eu até
evito trazer meu filho ao shopping.
Sem saber o que dizer, ou por onde começar, eu
fiquei calado.
– As pessoas se sentem mal vendo esse tipo de
coisa. Você está com o seu filho brincando e de repente, isso. Umas meninas que
não respeitam ninguém, nem o lugar público. Tudo bem que você não viu. Mas você
não se sente incomodado com isso, não?
– Eu acho, sinceramente, que eu não tenho o
direito de me sentir incomodado com um beijo. É isso! Até mais.
Enquanto eu me levantava pude perceber com o
canto do olho que o sujeito ficou petrificado. Ele me olhava querendo
argumentar, procurava algumas palavras pra responder, mas parece que não
achava. Aí ele só me olhava e ficou assim, me acompanhando, até eu sumir na
curva para as escadas rolantes.
Cada andar que subia eu pensava na vida daquele
sujeito. Pensava na miserável mulher que tinha de conviver com ele, no coitado
do filho que ia receber aquele tipo de educação, nos pais dele, nos amigos
dele, nos colegas de trabalho, na descendência involuída que ele ia produzir
para o mundo, mundo este, já hoje, bem à frente desses infortunados incomodados.
Tudo que pensa, que lê, que estuda, que aprende,
que ensina, que propõe; tudo que solidariza, que fraterniza, que sensibiliza e
que humaniza está incomodando as mentes incomodadas.
As mentes que temem. As mentes que mentem. As
mentes que matam.
Esses moços, pobres moços.
Pobres incomodados... com o amor.