quarta-feira, 27 de março de 2019

O Circo


Lauro tinha o nome da avó. Desde menino era apaixonado por fantasias de circo. Palhaço, trapezista, mágico e equilibrista, ele sempre tinha algum pedaço de pano em vista, que virava roupa de circo quando fingia estar em cena, no picadeiro por ele mesmo criado, seja nas festas da família ou mesmo nos finais de semana em que os primos iam visitá-lo.
Depois de certo tempo a mãe começou a ficar preocupada com o comportamento do garoto. Na adolescência ele destoava dos outros meninos da escola que sempre queriam brigar, provocar os meninos menores ou mesmo as meninas, das quais ele sempre se tornava amigo com grande e maior facilidade. E justamente por sua sensível habilidade a mãe intuía ter algo diferente no temperamento do filho.
Neste período ele adorava os programas de circo que passavam na tevê. Dizia que o que mais gostava era a maneira como eles se cumprimentavam, o jeito como se abraçavam durante os números e, nas apresentações na tela, tudo era inebriante, sempre uma festa contagiante.
Nas aulas de educação física ele ia direto se equilibrar na corda esticada no pátio ou ficava afastado da turma, fazendo malabares com as peças da ginástica artística. Para ambas as atividades mostrava talento raro, tanto que os aplausos dos colegas, ao final da apresentação, recebiam em troca um agradecimento teatral, com seu corpo curvado como regra geral.
Seu pai, por sua vez, achava tudo normal. Aquele interesse pelo ambiente do circo é coisa de criança, dizia. Quando via o menino pegar a bicicleta e andar de costas, alternando as mãos e fazendo estripulias ele achava graça da sua habilidade, pois que ninguém o ensinou na verdade. Mas em seguida dizia à esposa que já já aquilo ia passar, que ela não se preocupasse tanto e que não havia razão pra ela ficar tão ansiosa com o rapaz, que acabara de fazer 18 anos e teria todas as opções pela frente.
A melancolia da mãe se misturava de alguma maneira com a alegria que o filho trazia todo dia para aquela casa humilde, na calma daquela cidadezinha do interior. Eram sentimentos confusos que ela só sentia, mas não sabia explicar.
O fato é que Lauro, e disso ninguém sabia, era uma alma inquieta e revolucionária. No exato dia em que irrompeu a biblioteca da escola e lhe caíram nas mãos os grandes autores socialistas, os pensadores doutrinários, os anarquistas solidários e os poetas libertários, tudo mudou.
Todas as suas certezas políticas, suas vertentes artísticas e suas aspirações altruístas passavam inevitavelmente pelo picadeiro e pela vida na comunidade circense, como se aquilo fosse um destino conhecido e esperado, um porto seguro há muito ansiado.
Então, naquele abril despedaçado, questionando a sua própria sina, Lauro vai até a estrada constatar o que o povoado todo comentava: que quando a cidade cruzava, a trupe circense que passava, teve uma caminhonete enguiçada. O conserto, por perto, caso tudo certo, se daria na manhã seguinte, o que era música pra aquele ouvinte.
Quando o dia amanheceu só restava dele uma carta para a mãe, que dizia adeus. “Minha querida mãezinha, os sonhos já nascem dentro da gente”, dizia um trecho. “Fora do circo nos ensinam a vencer o outro, a todos, a ser o primeiro, o líder. No circo vou aprender a segurar a corda pro outro subir, vou ser o apoio, o auxílio, o caminho. E sinto que deve ser muito bom a gente ser o caminho para alguém.”
“Que o sentimento do palhaço, que chora e faz rir, alcance e acalme o seu coração e o de meu pai. O palhaço entende as suas próprias fraquezas. E as nossas mais ainda. Diga ao pai que, de alguma forma, sinto que estou cumprindo o meu destino. Não sei explicar isso. Mas é assim para mim. Fique com Deus, na benção de Piolin”.


Durante a minha infância eu considerava que morrer era como ir com o circo. Ir para uma outra vida, mais simples, mais leve, sem corpo, lá no alto, acima do além. Eu nunca contei isso pra ninguém, mas eu achava que esse sonho era um anúncio da minha morte.
Mais tarde, viver no circo de verdade era um sonho que ia e vinha e que, só com a idade, foi arrefecendo. Eu achava que se tivesse de ser, assim seria, e ponto: pela mão da sorte ou do fardo, do prumo, pelas coincidências do rumo, dessas que o destino nos põe no colo ou na mão, sem contestação.
Por fim, neste instante em que escrevo acabo de descobrir, com enlevo, que coincidentemente, hoje é Dia Nacional do Circo. Uma homenagem ao grande palhaço Piolin, nascido justamente em 27 de março de 1897.
A ele peço a bênção. Da vida!


sexta-feira, 8 de março de 2019

A Primeira Estação

Para minha mãe

Estou aqui na plataforma da Estação Primeira. Ainda não acredito direito no que vivi. Algum júri que reconheça o valor do pobre, do negro e do índio é inacreditável nestes tempos brasileiros sombrios. O fato de juízes que se resignam, e nos surpreendem, diante de um enredo em verde e rosa, ao proclamar a vitória da verdade aludindo o respeito a um povo campeão de dignidade, é um tanto incomum.
Acolhedora escola essa criada pra ensinar samba, mas que ensina muito mais, com livros outros, sobre heróis outros, heróis dignos, verídicos, honrados. Além do samba. Além de uma escola de samba. Uma aula de cidadania, de fraternidade, de história e cultura em plena avenida. Uma escola de frondosos galhos que, como mãe, a todos acolhe num grande abraço, sem distinção alguma. Que com suas tenras verdes folhas rosas a todos sombreia no descanso merecido. São folhas verdes de uma mangueira que dá frutos manga-rosa, juntando num só estandarte o amor, a fé e a arte.
Seu berço do samba, que a todos embala, cria e dá vida aos sonhos, são becos de glórias, vielas de resistência, de arte, entremeando caminhos, tortuosas vertentes. Valentes poetas, cantores, batuqueiros, de várias raízes, sementes, pedras pendentes, imponentes. Um chão de esmeraldas!
Estação Primeira de sambas inesquecíveis, sambas monumentos, brado civil que se viu cercado de orgulho. Orgulho de toda uma nação. Uma gente que acorda com o sol, que labuta diariamente contra os falsos leões religiosos, contra os falsos leões humanos, desbravando preconceitos, reagindo por direitos. E que dorme com a luz da lua, celebrando os seus ancestrais, os menestréis que um dia cantaram o verde e o rosa lá no alto do cruzeiro, onde são feitas todas as orações.
Pois a Mangueira provou que há histórias que precisam ser resgatadas. Outras que precisam ser recontadas. Nos livros, nas ruas, nas mentes. À sombra de uma mangueira, de preferência. Mostrando, de uma vez por todas, de que material essa nação é feita, a partir de que genética ela foi forjada e em quais lutas libertárias contra a tirania e o autoritarismo ela foi talhada.
Só mesmo com esses galhos enormes, com esses braços-galhos históricos. Só mesmo em uma Estação Primeira, onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira de cinzas com o maior e mais garboso sorriso no rosto. Uma sensação de dever cumprido. Uma retribuição, uma reverência diante da própria ascendência. Uma profissão de fé e uma vocação para embalar o futuro ao som de um único timbal, peça chave da memória. Um timbal que ecoa, que sustenta altivo o brado uníssono de toda uma avenida. Um timbal que carrega em si todas as vozes, todos os nomes, todos os cetros.
Sargento, Jobim, Buarque, Cavaquinho, Cartola e Zica. Xangô, Braguinha, Bethânia, Neuma, Leci, Jamelão e Alcione. Em nome de todos. Em nome de Betinho, Darcy, Dorothy, Mandela e Marielle. De Joãosinho, Chico Mendes, Dandara, Luiza Mahin e Zumbi.
Pois abram alas para a Estação Primeira de Mangueira. Abram alas para a dignidade. Alas para a democracia, para a soberania popular. Abram alas para a Mangueira cantar a verdadeira história, a história da cultura de um povo que se orgulha, este sim, de ser uma nação chamada Brasil.
Pois abram alas para a Mangueira passar!