sexta-feira, 8 de março de 2019

A Primeira Estação

Para minha mãe

Estou aqui na plataforma da Estação Primeira. Ainda não acredito direito no que vivi. Algum júri que reconheça o valor do pobre, do negro e do índio é inacreditável nestes tempos brasileiros sombrios. O fato de juízes que se resignam, e nos surpreendem, diante de um enredo em verde e rosa, ao proclamar a vitória da verdade aludindo o respeito a um povo campeão de dignidade, é um tanto incomum.
Acolhedora escola essa criada pra ensinar samba, mas que ensina muito mais, com livros outros, sobre heróis outros, heróis dignos, verídicos, honrados. Além do samba. Além de uma escola de samba. Uma aula de cidadania, de fraternidade, de história e cultura em plena avenida. Uma escola de frondosos galhos que, como mãe, a todos acolhe num grande abraço, sem distinção alguma. Que com suas tenras verdes folhas rosas a todos sombreia no descanso merecido. São folhas verdes de uma mangueira que dá frutos manga-rosa, juntando num só estandarte o amor, a fé e a arte.
Seu berço do samba, que a todos embala, cria e dá vida aos sonhos, são becos de glórias, vielas de resistência, de arte, entremeando caminhos, tortuosas vertentes. Valentes poetas, cantores, batuqueiros, de várias raízes, sementes, pedras pendentes, imponentes. Um chão de esmeraldas!
Estação Primeira de sambas inesquecíveis, sambas monumentos, brado civil que se viu cercado de orgulho. Orgulho de toda uma nação. Uma gente que acorda com o sol, que labuta diariamente contra os falsos leões religiosos, contra os falsos leões humanos, desbravando preconceitos, reagindo por direitos. E que dorme com a luz da lua, celebrando os seus ancestrais, os menestréis que um dia cantaram o verde e o rosa lá no alto do cruzeiro, onde são feitas todas as orações.
Pois a Mangueira provou que há histórias que precisam ser resgatadas. Outras que precisam ser recontadas. Nos livros, nas ruas, nas mentes. À sombra de uma mangueira, de preferência. Mostrando, de uma vez por todas, de que material essa nação é feita, a partir de que genética ela foi forjada e em quais lutas libertárias contra a tirania e o autoritarismo ela foi talhada.
Só mesmo com esses galhos enormes, com esses braços-galhos históricos. Só mesmo em uma Estação Primeira, onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira de cinzas com o maior e mais garboso sorriso no rosto. Uma sensação de dever cumprido. Uma retribuição, uma reverência diante da própria ascendência. Uma profissão de fé e uma vocação para embalar o futuro ao som de um único timbal, peça chave da memória. Um timbal que ecoa, que sustenta altivo o brado uníssono de toda uma avenida. Um timbal que carrega em si todas as vozes, todos os nomes, todos os cetros.
Sargento, Jobim, Buarque, Cavaquinho, Cartola e Zica. Xangô, Braguinha, Bethânia, Neuma, Leci, Jamelão e Alcione. Em nome de todos. Em nome de Betinho, Darcy, Dorothy, Mandela e Marielle. De Joãosinho, Chico Mendes, Dandara, Luiza Mahin e Zumbi.
Pois abram alas para a Estação Primeira de Mangueira. Abram alas para a dignidade. Alas para a democracia, para a soberania popular. Abram alas para a Mangueira cantar a verdadeira história, a história da cultura de um povo que se orgulha, este sim, de ser uma nação chamada Brasil.
Pois abram alas para a Mangueira passar!