Para minha mãe
Estou aqui na plataforma da Estação Primeira.
Ainda não acredito direito no que vivi. Algum júri que reconheça o valor do
pobre, do negro e do índio é inacreditável nestes tempos brasileiros sombrios. O
fato de juízes que se resignam, e nos surpreendem, diante de um enredo em verde
e rosa, ao proclamar a vitória da verdade aludindo o respeito a um povo campeão
de dignidade, é um tanto incomum.
Acolhedora escola essa criada pra ensinar samba,
mas que ensina muito mais, com livros outros, sobre heróis outros, heróis
dignos, verídicos, honrados. Além do samba. Além de uma escola de samba. Uma
aula de cidadania, de fraternidade, de história e cultura em plena avenida. Uma
escola de frondosos galhos que, como mãe, a todos acolhe num grande abraço, sem
distinção alguma. Que com suas tenras verdes folhas rosas a todos sombreia no
descanso merecido. São folhas verdes de uma mangueira que dá frutos manga-rosa,
juntando num só estandarte o amor, a fé e a arte.
Seu berço do samba, que a todos embala, cria e
dá vida aos sonhos, são becos de glórias, vielas de resistência, de arte,
entremeando caminhos, tortuosas vertentes. Valentes poetas, cantores,
batuqueiros, de várias raízes, sementes, pedras pendentes, imponentes. Um chão
de esmeraldas!
Estação Primeira de sambas inesquecíveis, sambas
monumentos, brado civil que se viu cercado de orgulho. Orgulho de toda uma
nação. Uma gente que acorda com o sol, que labuta diariamente contra os falsos leões
religiosos, contra os falsos leões humanos, desbravando preconceitos, reagindo
por direitos. E que dorme com a luz da lua, celebrando os seus ancestrais, os
menestréis que um dia cantaram o verde e o rosa lá no alto do cruzeiro, onde
são feitas todas as orações.
Pois a Mangueira provou que há histórias que
precisam ser resgatadas. Outras que precisam ser recontadas. Nos livros, nas ruas,
nas mentes. À sombra de uma mangueira, de preferência. Mostrando, de uma vez
por todas, de que material essa nação é feita, a partir de que genética ela foi
forjada e em quais lutas libertárias contra a tirania e o autoritarismo ela foi
talhada.
Só mesmo com esses galhos enormes, com esses
braços-galhos históricos. Só mesmo em uma Estação Primeira, onde a cabrocha
pendura a saia no amanhecer da quarta-feira de cinzas com o maior e mais garboso sorriso no rosto. Uma sensação de dever cumprido. Uma retribuição, uma
reverência diante da própria ascendência. Uma profissão de fé e uma vocação
para embalar o futuro ao som de um único timbal, peça chave da memória. Um
timbal que ecoa, que sustenta altivo o brado uníssono de toda uma avenida. Um
timbal que carrega em si todas as vozes, todos os nomes, todos os cetros.
Sargento, Jobim, Buarque, Cavaquinho, Cartola e
Zica. Xangô, Braguinha, Bethânia, Neuma, Leci, Jamelão e Alcione. Em nome de
todos. Em nome de Betinho, Darcy, Dorothy, Mandela e Marielle. De Joãosinho,
Chico Mendes, Dandara, Luiza Mahin e Zumbi.
Pois abram alas para a Estação Primeira de Mangueira. Abram
alas para a dignidade. Alas para a democracia, para a soberania popular. Abram
alas para a Mangueira cantar a verdadeira história, a história da cultura de um
povo que se orgulha, este sim, de ser uma nação chamada Brasil.
Pois abram alas para a Mangueira passar!