No ponto de ônibus, eu estava com drama de
consciência por não ir a pé até o Centro. Tão pertinho, eu me censurava pela
minha preguiça e, ao mesmo tempo, me absolvia explicando a mim mesmo que aquela
chuva fininha me dava todas as razões para preferir o ônibus.
Um velhinho ao meu lado se encolhia na marquise
e reclamava da chuva e do ônibus que não vinha. De repente passou um amigo seu
e os dois começaram a falar de aposentadoria, pois ambos não se viam desde que
se aposentaram e acabaram por perder o contato.
A conversa girava em torno de lugares em comum,
de pessoas do trabalho, de futebol e de tainha, até que um deles reclamou que
tinha sentido umas dores, dias atrás, e que estava preocupado. Prontamente, o
outro respondeu que o que ele mais fazia, depois da aposentadoria, era buscar a
neta no colégio. Era a oportunidade que ele tinha de ver a neta e dar uma boa
caminhada:
– Das duas uma: ou o sujeito, depois de se
aposentar, passa a buscar a neta no colégio ou acaba ficando doente. Não tem
saída!
E reforçava que a pessoa deve buscar algo pra
fazer, coisas novas pra desenvolver, aquilo que não podia fazer enquanto
trabalhava e que era justamente essa busca por atividades contínuas que faria
com que a vida fosse mais saudável. Mas tudo isso figurativamente, dizia, dentro
da ação de buscar a neta.
Seguiu contando que ia todos os dias ao colégio e
que os dois vinham conversando pelo caminho até a casa da nora. Aí eles
almoçavam e ele ia para casa dele, descansar de tarde. Essa parte, do descansar
de tarde, provocou alguns risinhos no pessoal que estava no ponto, mas ele nem
notou.
Quando o ônibus chegou eles ficaram na parte da
gratuidade, na frente, enquanto eu fui lá pro meio. De lá eu ainda conseguia
ouvir os papos sobre a tal netinha.
Sentadas à minha frente, mãe e filha travavam
uma conversa de convencimento. E a treta era comida saudável versus porcarias
comestíveis. Tudo o que a filha comia a mãe dizia que fazia mal e tudo o que a
mãe indicava a menina dizia que era éca, ruim.
– Das duas uma: ou você come comida direito ou
vai arrumar uma doença. Quem não come bem não aprende bem, fica burra, não
cresce, não desenvolve o corpo nem a mente. Não tem saída, minha filha!
Quase que eu chamei o vôzinho lá da frente pra
entrar na conversa. Provavelmente ele poderia ajudar e muito. Até estiquei o
pescoço pra ver se ele ainda estava lá, já que agora viajava calado e sem o seu
amigo que, provavelmente, tinha descido.
Fiquei pensando em quantas mães e pais pelo
mundo, naquela mesmíssima hora de almoço, estariam dizendo às suas filhas e
filhos: comam isso e não comam aquilo; isso é comida, aquilo é lixo do
capitalismo que mata gente todo dia, no mundo todo.
– Lixo, mãe? Eu não como lixo não.
– É lixo sim. Figurativamente, filha, mas, ainda
assim, é lixo.
Quando cheguei no consultório eu ainda estava reverberando
aquelas conversas na minha cabeça. O cardiologista já estava com os meus exames
nas mãos e só estava me esperando para traduzir. Disse que eu estava no limite
de precisar tomar remédio pra controlar tanto o colesterol como a pressão, pois
que ambos estavam levemente altos e precisariam de atenção.
– A minha prescrição é, das duas uma: ou é
remédio ou alguma mudança na alimentação, junto com exercício físico.
– Mas eu não tenho uma neta.
– Que neta? Quem falou em neta?
– O senhor não falou? Nem figurativamente?
– Eu não.
Era eu que já estava variando e misturando as
bolas, as conversas todas daquele dia.
– Mas, como assim? – tentei retomar o diálogo,
perguntando o que eu devia fazer.
E ele:
– Na sua idade, junto com a aposentadoria, é bom
começar a fazer atividades físicas regulares. Pra baixar pressão e colesterol,
inclusive. Se o sujeito se aposenta e fica parado morre. E eu não estou falando
figurativamente não. Começa a aparecer coisa ruim de todo lado. Não tem saída.
– É que eu nunca tomei remédio controlado,
doutor. Acho muito ruim tomar qualquer remédio.
– Você não é o único.
Então o médico pegou um bloco e começou a
escrever, enquanto me explicava.
– Vou te dar uma chance. Não vou te dar remédio
algum hoje. Mas você vai voltar aqui em 3 meses. Até lá quero atividades
físicas e alimentação adequada, com frutas e legumes, pra baixar o colesterol e
a pressão.
Me mostrou o papel e continuou:
– Aqui tem escrito o que pode e o que não pode.
O que é saudável e o que é lixo.
– Lixo do capitalismo?
– O quê? Não, lixo comestível mesmo. Que muita
gente come e adora. Aí vamos ver. Vamos fazer novos exames e se você conseguir
melhorar esse quadro aqui, continua sem remédio. Fechado?
Eu continuo sem ter uma neta, mas claro que eu
tinha que aceitar aquele trato. Não só por não gostar de tomar os tais
remédios, mas, para o caso de ela, a neta, chegar algum dia, eu ainda estar por
aqui. Saudável e comendo coisas boas. Pra poder buscá-la no colégio.
E sem essa de figurativamente.