terça-feira, 18 de junho de 2019

O Campeão


Michael e Rubens trabalharam na mesma empresa durante seis anos. Um companheirismo que se dava debaixo de alguns solavancos, dentro dos difíceis limites da competição que a própria natureza esportiva fomentava.
Desde sempre o talento dos dois era motivo de comparação e a própria companhia deixava claro o papel de um e outro dentro do campeonato. Diziam sempre que tudo aquilo, todo aquele circo, não era nada além de negócios e isso, somente isso, era o que importava.
Alguns momentos de amizade até surgiam, aqui e ali, entre aqueles dois rivais, nem tão rivais assim, e, dentro de cada episódio, ambos aproveitavam pra relevar que o time estava sempre em primeiro lugar e que o trabalho em equipe exigia dos dois aquela postura, sempre que possível.
Com os anos se passando, as trajetórias de Rubens e Michael foram se distanciando. Enquanto um se tornava multicampeão, recebendo muitos prêmios e batendo muitos recordes da categoria, o outro penava pra ser competitivo, pra continuar se divertindo, como ele mesmo dizia.
Mesmo depois de trocar de time, passando a competir em outras escuderias, Rubens até era elogiado por ser um exímio acertador de carros, um cara que, diziam, jogava pro time, mas, definitivamente não vencia as corridas e seu desempenho não estava à altura do antigo companheiro.
Sua trajetória então foi, pouco a pouco, se tornando motivo de piadas, tanto nos veículos oficiais quanto nas redes eletrônicas, e os humoristas se multiplicavam em criar esquetes anedóticas com o nome do Rubens. Michael embarcava nas oportunidades, sempre colaborando com elas. Em uma entrevista coletiva, em 2006, um humorista perguntou o que ele faria se acordasse, em uma manhã qualquer, no corpo de Rubens. Michael, diante dos jornalistas, na mesa, fez uma cena esfregando os olhos para responder que sua reação seria chorar. A plateia e os entrevistadores riram, sem reservas.
Dentro das escuderias, entretanto, os colegas sempre apontavam que Rubens era um cara comprometido com o desenvolvimento dos produtos, com o aprimoramento da equipe, até mesmo dos pilotos mais novos, futuros concorrentes. Também nos diversos programas de pesquisas de componentes, de peças, de combustíveis e na aerodinâmica, entre outros, ele sempre estava envolvido e ajudando, sendo que a sua camaradagem no trato com todos era sempre o lado mais citado.
A verdade é que, durante todo esse tempo, jamais se viu ou ouviu de Rubens uma mínima reclamação quanto às piadas, às alusões aos seus tempos ou o desempenho nas corridas. Claro que ele ficava triste, mas quando algo de ruim assim surgia ele simplesmente procurava as alternativas ao seu alcance. E quando vencia alguma prova ele voltava a ser menino. O menino que festeja com toda a sua turma. O menino de Interlagos que, aos seis anos, olhava os carros de Fórmula 1 de cima da laje da casa da avó Izaura.
Recentemente, num domingo, agora em maio, uma cena mexeu comigo quando liguei a tevê naquele final de manhã. Estava acontecendo a premiação de uma corrida que tinha acabado de acontecer, em Goiânia. No alto do pódio, recebendo o troféu, o Rubens. O mesmo Rubens, de olhos marejados, cabelos parcos, alçava a sua taça e oferecia a toda a sua equipe. Enquanto todos aplaudiam, o locutor anunciava o seu nome, que ecoava pelas arquibancadas. Posso jurar que vi muitos pilotos e também vários componentes das outras equipes ali, em volta do pódio, aplaudindo e fazendo festa com aquele alegre campeão.
Para mim, ali estava o retrato de um cara digno. No meio dos abraços vi surgir um menino, provavelmente filho de um dos pilotos vencedores, escalando o palco pra ficar junto do pai. Notei que ele olhava muito pro campeão enquanto este festejava e, quando o pai deu uma brecha, ele foi até o Rubens, oferecendo a mão espalmada pro alto, como os adultos faziam. Os dois então bateram as mãos, como duas crianças, trocaram um abraço e o pai, não conseguindo segurar o ímpeto, se juntou aos abraços dos dois.
Depois de subir no teto carro com a taça, banhado de champanhe, finalmente chegou a vez das entrevistas. E foi legal perceber que, enquanto ele falava, as pessoas iam passando por ele e, mesmo diante dos microfones, iam interrompendo, sem reservas. Um dava um tapinha no ombro, outro um abraço, um apontava o dedo em riste indicando o número um, outro um beijo no rosto, ou um afago, ou um “valeu”. Eram tantos, que a entrevista custou a terminar.
Eu estava estático, de pé, assistindo toda a celebração e ouvia ele dizer aos jornalistas que o que ele amava mesmo era estar atrás de um volante, dentro de um cockpit, acelerando numa curva e ouvindo o ronco dos motores e o cheiro dos pneus. Qualquer que fosse a corrida, a modalidade, enquanto ele tivesse forças pra continuar se divertindo, as pistas seriam o seu lugar preferido. Em seguida vieram os cumprimentos dos repórteres e os devidos parabéns.
Definitivamente, ali na tela estava um cara bacana, que deu uma bela volta por cima no autódromo da vida. Um cara que tinha tudo pra desistir de correr, desistir de tentar ou desistir de se expor a novos fracassos diante do seu país, mas que estava ali levantando uma nova taça, ainda competitivo no seu campeonato. Um sujeito que, provavelmente, vem guardando somente as boas memórias da vida e que muda rapidamente de fisionomia quando o assunto é o estado de saúde do bom e velho Schumi, como ele mesmo diz.
E eu passei aquele domingo lembrando a trajetória, a carreira e o destino obstinado daqueles dois pilotos. Pensando nas idas e vindas das amizades que cultivei, apostei e perdi. Nas pessoas com quem fui justo, ou não, e nas escolhas que eu também terei de fazer nessas curvas do caminho que ainda me restam.
Que ainda me restam.