sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Chance


No ponto de ônibus, eu estava com drama de consciência por não ir a pé até o Centro. Tão pertinho, eu me censurava pela minha preguiça e, ao mesmo tempo, me absolvia explicando a mim mesmo que aquela chuva fininha me dava todas as razões para preferir o ônibus.
Um velhinho ao meu lado se encolhia na marquise e reclamava da chuva e do ônibus que não vinha. De repente passou um amigo seu e os dois começaram a falar de aposentadoria, pois ambos não se viam desde que se aposentaram e acabaram por perder o contato.
A conversa girava em torno de lugares em comum, de pessoas do trabalho, de futebol e de tainha, até que um deles reclamou que tinha sentido umas dores, dias atrás, e que estava preocupado. Prontamente, o outro respondeu que o que ele mais fazia, depois da aposentadoria, era buscar a neta no colégio. Era a oportunidade que ele tinha de ver a neta e dar uma boa caminhada:
– Das duas uma: ou o sujeito, depois de se aposentar, passa a buscar a neta no colégio ou acaba ficando doente. Não tem saída!
E reforçava que a pessoa deve buscar algo pra fazer, coisas novas pra desenvolver, aquilo que não podia fazer enquanto trabalhava e que era justamente essa busca por atividades contínuas que faria com que a vida fosse mais saudável. Mas tudo isso figurativamente, dizia, dentro da ação de buscar a neta.
Seguiu contando que ia todos os dias ao colégio e que os dois vinham conversando pelo caminho até a casa da nora. Aí eles almoçavam e ele ia para casa dele, descansar de tarde. Essa parte, do descansar de tarde, provocou alguns risinhos no pessoal que estava no ponto, mas ele nem notou.
Quando o ônibus chegou eles ficaram na parte da gratuidade, na frente, enquanto eu fui lá pro meio. De lá eu ainda conseguia ouvir os papos sobre a tal netinha.
Sentadas à minha frente, mãe e filha travavam uma conversa de convencimento. E a treta era comida saudável versus porcarias comestíveis. Tudo o que a filha comia a mãe dizia que fazia mal e tudo o que a mãe indicava a menina dizia que era éca, ruim.
– Das duas uma: ou você come comida direito ou vai arrumar uma doença. Quem não come bem não aprende bem, fica burra, não cresce, não desenvolve o corpo nem a mente. Não tem saída, minha filha!
Quase que eu chamei o vôzinho lá da frente pra entrar na conversa. Provavelmente ele poderia ajudar e muito. Até estiquei o pescoço pra ver se ele ainda estava lá, já que agora viajava calado e sem o seu amigo que, provavelmente, tinha descido.
Fiquei pensando em quantas mães e pais pelo mundo, naquela mesmíssima hora de almoço, estariam dizendo às suas filhas e filhos: comam isso e não comam aquilo; isso é comida, aquilo é lixo do capitalismo que mata gente todo dia, no mundo todo.
– Lixo, mãe? Eu não como lixo não.
– É lixo sim. Figurativamente, filha, mas, ainda assim, é lixo.
Quando cheguei no consultório eu ainda estava reverberando aquelas conversas na minha cabeça. O cardiologista já estava com os meus exames nas mãos e só estava me esperando para traduzir. Disse que eu estava no limite de precisar tomar remédio pra controlar tanto o colesterol como a pressão, pois que ambos estavam levemente altos e precisariam de atenção.
– A minha prescrição é, das duas uma: ou é remédio ou alguma mudança na alimentação, junto com exercício físico.
– Mas eu não tenho uma neta.
– Que neta? Quem falou em neta?
– O senhor não falou? Nem figurativamente?
– Eu não.
Era eu que já estava variando e misturando as bolas, as conversas todas daquele dia.
– Mas, como assim? – tentei retomar o diálogo, perguntando o que eu devia fazer.
E ele:
– Na sua idade, junto com a aposentadoria, é bom começar a fazer atividades físicas regulares. Pra baixar pressão e colesterol, inclusive. Se o sujeito se aposenta e fica parado morre. E eu não estou falando figurativamente não. Começa a aparecer coisa ruim de todo lado. Não tem saída.
– É que eu nunca tomei remédio controlado, doutor. Acho muito ruim tomar qualquer remédio.
– Você não é o único.
Então o médico pegou um bloco e começou a escrever, enquanto me explicava.
– Vou te dar uma chance. Não vou te dar remédio algum hoje. Mas você vai voltar aqui em 3 meses. Até lá quero atividades físicas e alimentação adequada, com frutas e legumes, pra baixar o colesterol e a pressão.
Me mostrou o papel e continuou:
– Aqui tem escrito o que pode e o que não pode. O que é saudável e o que é lixo.
– Lixo do capitalismo?
– O quê? Não, lixo comestível mesmo. Que muita gente come e adora. Aí vamos ver. Vamos fazer novos exames e se você conseguir melhorar esse quadro aqui, continua sem remédio. Fechado?
Eu continuo sem ter uma neta, mas claro que eu tinha que aceitar aquele trato. Não só por não gostar de tomar os tais remédios, mas, para o caso de ela, a neta, chegar algum dia, eu ainda estar por aqui. Saudável e comendo coisas boas. Pra poder buscá-la no colégio.
E sem essa de figurativamente.