quarta-feira, 31 de julho de 2019

O Mototáxi


Quando apareceu a oportunidade de eu ir trabalhar naquele congresso de arqueologia, eu aceitei na hora. Ia ser em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e meu irmão tinha ido morar lá fazia poucos meses. Então era algo irrecusável, até pelo fato de ser sempre bom sair um pouco da rotina do trabalho em Floripa.
Chegamos todos juntos no domingo, eu e a equipe toda. O congresso começava na segunda. Eles ficaram em hotéis no Centro e eu fui pra casa do meu irmão, que fica em um bairro afastado, mas que é relativamente perto do local do evento, o que ia facilitar a minha chegada.
Na segunda-feira, bem cedinho, atendendo às indicações do meu irmão e dos amigos dele, eu fui até o ponto de mototáxi pra poder ir pro congresso, pois ali era um tanto rara a oferta de ônibus, ainda mais naquele sentido, oposto ao do Centro da cidade. Eles me indicaram o ponto, que era pertinho, na esquina, e alertaram que as motos normalmente andam em louca disparada, sendo necessário que o próprio passageiro alerte pra que eles não corram. Essa era a recomendação primordial e eu a tinha guardado bem.
Fui chegando no ponto e já fui vendo que as motos eram um tanto detonadas, velhas mesmo. Algumas tinham os assentos rasgados e o estado dos capacetes era preocupante, pra dizer o mínimo. Muitas tinham os escapamentos comprometidos e o barulho do motor era mais alto que o normal.
Foi aí que eu me lembrei dos cachorros loucos, como são chamados os motoboys em São Paulo. Quando eu morei na cidade todo dia tinha uma ocorrência com o pessoal do trabalho, envolvendo os tais cachorros loucos. Retrovisor era normal eles quebrarem. Mas além disso era porta amassada, antena arrancada, lateral arranhada, além das lanternas que se iam embora, com lâmpadas e tudo mais.
Bem, mas eu não tinha muita escolha naquela circunstância. Precisava chegar ao centro de convenções e só tinha o tal ponto de mototáxi pra meu transporte. O rapaz da vez me viu e foi se aproximando:
– Bom dia doutor. O senhor vai pra onde?
– Bom dia. Eu gostaria de ir ao centro de convenções.
– Se gostaria, é pra lá que o senhor vai. Pode deixar comigo.
Tentando achar os termos certos, as palavras adequadas pra explicar o meu pânico de andar de moto e por estar prestes a ser conduzido por um cachorro louco de Campo Grande, eu gaguejei um pouco buscando um bom motivo pra que ele não corresse muito no trajeto.
Então expliquei que eu tinha saído de casa bem cedo, que não tinha pressa alguma, e que ele podia pilotar bem devagar pois o horário do início dos trabalhos estava bem tranquilo. Ele tirou a moto do descanso, me deu um capacete que tinha um certo cheiro desagradável e me disse pra eu ficar tranquilo e aproveitar a viagem. Parecia até frase de comissário de bordo.
Na primeira lombada que ele passou e que eu quase fui jogado na calçada distante, meu capacete subiu e depois bateu com força no alto da cabeça, visto que estava frouxo e suas tiras já não funcionavam direito. Eu pedi pra ele dar uma parada pra eu me ajeitar melhor e expliquei:
– Olha só, eu tenho um problema no coração, estou tomando remédio e talvez precise fazer uma cirurgia em breve. Então, vamos tentar ir bem devagar, sem sobressaltos, sem sustos, senão eu vou infartar aqui mesmo e você vai ter que me levar pro hospital, ao invés do centro de convenções. Tá certo assim?
– Não. Pô. Tranquilo doutor. Se é caso de saúde, tá certo sim.
Eu nem me importei se ele tinha ficado assustado com a minha doença. Aliás, antes ele assustado do que eu. Mas o fato é que aquilo fez toda a diferença e o resto do trajeto foi realmente tranquilo e pacifico, como eu jamais poderia imaginar.
Até quando ele passou bem devagarzinho em uma outra lombada, se apressou em se desculpar:
– Foi mal aí, doutor. Era uma lobada alta essa. Como está o coração? Tudo bem?
E eu disse que sim, dando um leve sorriso de vitória.
Como eu tinha carona na volta do congresso, só precisei fazer outra viagem de mototáxi no dia seguinte. E foi muito interessante o novo encontro com o ponto das motos. Já na chegada o piloto do dia anterior veio me perguntar se eu ia pra lá de novo. Eu disse que sim e ele me apresentou o rapaz da vez, que ia me conduzir, não sem antes fazer as suas recomendações expressas.
– O doutor tem infarto no coração. Tá entendendo? Então, cê vai bem devagar, valeu? Faz de conta que tá levando a sua bisavó e cuidado com as lombadas altas na chegada do centro de convenções.
Eu até podia ficar chateado com aquelas recomendações. Mas se era pra ele pilotar devagar, quer saber? Pode falar o que ele quiser, contanto que eu não caia. Ou tenha um infarto de verdade.
Mas foi durante o trajeto que eu tive a noção exata do quanto todo aquele ponto de mototáxi tinha sido alertado sobre a extensão do meu infarto. Primeiro, a gente parou num sinal e um outro piloto veio falar com o que me levava. Ele usou códigos e sinais pra lá de estranhos, mas eu entendi que era um aviso pra ele não correr comigo na garupa. Eu quase ri da cena, ainda mais quando o outro reclamava que já sabia, de tanto que devia ter sido alertado pelo outro colega. Mas eu corria o risco de perder a razão, então melhor deixar quieto.
Mais tarde, num cruzamento, outro mototáxi que vinha em sentido contrário também fez sinal pro meu piloto não correr. De longe, ele fez o formato de um coração com as mãos, apontou pro próprio peito e em seguida meneou a mão estendida, alternando pra um lado e outro. No final, mostrou as duas palmas das mãos, flexionando pra frente, como se estivesse imitando o gesto de frear.
Eu não tinha ideia do quanto eles tinham ficado preocupados comigo. Mas se eu tiver que pegar um mototáxi outra vez na minha vida, sei exatamente o que vou fazer, e dizer, pra que ele não corra como um louco cachorro louco. Ah, se sei.