No meio da madrugada, voltando pro meu quarto, eu
dei de cara com a minha mãe na porta do quarto dela, me perguntando o porquê de
eu acender todas as luzes, da sala e do corredor, só pra ir ao banheiro. Sem
saber direito o que dizer, eu olhei para as lâmpadas atrás de mim e fingi que
nem tinha percebido que as tinha acendido.
No dia seguinte, para a minha sorte, quando ela
voltou ao assunto, meus irmãos estavam por perto e me ajudaram a responder. Na
verdade, eles tinham o mesmo sentimento que eu em relação às luzes, e todos nós
escondíamos a razão da nossa mãe, cada um por um motivo.
Tudo começou quando o filho da dona Iva, grande
amiga da minha mãe, nos deu de presente um quadro de Jesus. Uma noite ele chegou
lá em casa e, do nada, o deu pra minha mãe. Trouxe todo cheio de pompa, numa
caixa com um papel fino branco e o tirou de dentro de outra caixa menor, com
todo o cuidado. Depois mostrou a tela e disse que poderia providenciar uma
moldura mais pra frente, enquanto discorria sobre a técnica, as tintas usadas,
os efeitos de sombras, e minha mãe ouvindo tudo aquilo e achando bem mais legal
a explicação do que o próprio quadro em si.
Quando finalmente teve o quadro em suas mãos,
depois que o pintor foi embora, ela nos mostrou a tela e foi aí que a gente foi
ver o que ela tinha de tão especial. Quer dizer, pra gente, especial mesmo só as
observações do artista. A imagem era a de Jesus, comum, um tanto escura no fundo,
é verdade, mas com um bom trabalho no rosto, bem delineado e com um baita olho
azul, em contraste com o fundo branco do próprio branco dos olhos.
A gente ainda ouviu do pintor que ele não quis
botar no quadro aquelas auréolas, típicas das divindades, pra que ficasse clara
a sua intenção de pintar o Jesus como homem, já que ele estava sendo retratado na
sua condição humana, vivendo na Terra.
Bem, o fato é que a minha mãe quis dar um
destaque para o quadro, até em consideração ao filho da sua amiga, e o colocou
no final do corredor, acima da entrada para a sala de tevê. No segundo andar da
casa ficavam três quartos, todos de frente pra rua. Na parte dos fundos tinha
outro quarto, uma sala pequena, um banheiro e ainda um saguão, onde ficava uma
mesa, que unia todo o andar. Tudo era muito amplo naquela casa alugada de três
andares, onde os nossos próprios móveis, pequenos por natureza, dançavam livres
e tranquilos em todos os cômodos.
Quando então eu comecei a dizer a razão pela
qual eu tinha ligado todas as luzes pra ir ao banheiro, e quando meus irmãos disseram
que faziam a mesma coisa e, a seguir, quando todos dissemos pra nossa mãe que a
gente tinha medo daquele quadro, ela deu uma enorme palma na mão e disse “Não!”.
– Peraí, deixa eu ver se entendi. Vocês estão
com medo do quadro do Jesus?
– Mas mãe, ele fica muito sinistro de noite,
tudo escuro, de madrugada, fica olhando pra gente, mexendo os olhos, nos
acompanhando, parece que vai falar – dissemos todos juntos, umas frases por
cima das outras.
Eu tinha uns 13 pra 14 anos, meu irmão uns 11 e
minha irmã talvez sete. A gente já tinha comentado entre nós que o quadro nos dava
medo. Muitas vezes um levantava pra ir ao banheiro e pedia ao outro pra ficar de
olho, acompanhando, até chegar na porta. Depois, na volta, era certa a chegada
assustada pelo quadro ter mexido os olhos de novo.
Enquanto a gente contava tudo isso pra nossa
mãe, os medos, as vigias pra ir no banheiro, ela só repetia a frase “Gente, mas
é Jesus!” e ficava indignada com tudo aquilo.
No final de semana seguinte, para nossa
surpresa, meu pai mudou o quadro de lugar. Tirou do corredor e trouxe pra
saleta onde tinha a mesa, no hall entre os quartos. Pensamos que, pelo menos,
não era no nosso campo de visão a caminho do banheiro, e isso já fazia toda a
diferença.
Aquela semana passou tranquila e, quando a gente
achava que o problema do quadro estava resolvido, lá estava meu pai mudando de
novo o quadro de lugar, desta vez pra perto da janela, na parede lateral da
sala. A gente não entendeu nada.
Diante da nossa curiosidade desmedida, minha mãe
não teve outro jeito senão nos contar das suas decisões de, outra vez, mudar o
quadro de lugar.
– Olha só, primeiro quero dizer que vocês tinham
toda a razão. Este quadro parece mesmo que acompanha a gente com os olhos. Eu
não notei quando ele estava lá no final do corredor, mas, aqui nessa parede, não
deu certo. Ele fica de frente pro nosso quarto, meu e do seu pai, então, toda
vez que eu abro a porta, dou logo de cara com ele e a coisa foi ficando assim,
como dizer, assustadora.
Enquanto minha mãe falava a gente só ficava
remoendo as palavras dela, ditas pouco tempo antes: “Mas é Jesus, gente!”. Dava
até vontade de rir dessa lembrança, mas, naquela hora, a gente estava tão
aliviado por ela ter sentido o mesmo que nós, que ninguém riu.
Então ela explicou que, quando resolveu mudar
tudo pela terceira vez, o azar foi que o quadro ficou bem na linha da janela e
a luz do poste da rua pegava bem de frente.
– Aí mesmo que parecia que o Jesus ia sair
voando pela sala ou ia abrir o manto e aquele olhão pra correr atrás da gente –
disse já rindo e nos levando a rir também, só que dessa vez, junto com ela, o
que foi muito melhor.
Em sua saga errante, a tela, depois que foi
parar na frente da luz do poste, ficou naquela parede também por pouquíssimo
tempo, até que, finalmente, saiu dali e a gente nunca mais ouviu falar do tal
quadro de Jesus.
Muitos anos se passaram até que, num certo dia, na
casa da minha mãe, alguém estava remexendo numa caixa de louças e copos e, de
repente, tirou de dentro o tal quadro. A surpresa foi geral. Enquanto a gente
lembrava de toda a epopeia vivida, cada um oferecia pro outro levar a tela pra
sua própria casa, perguntando se tinha coragem. Claro que ninguém aceitou e
minha mãe pôs o coitado do Jesus de volta na sua caixa, enrolado nos seus panos
protetores.
– Pronto, deixa ele aqui quietinho. Com o seu sudário.
– Sudário?
– Gente, é o Jesus!
E caímos todos na risada.