sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Guacira


Desde que vim morar em Florianópolis, em 2001, passar as festas de fim de ano no Rio de Janeiro sempre foi algo mais do que uma opção. Além dos motivos óbvios da própria festa, do Natal com a família, de rever os amigos, tinha o capítulo a parte dos saraus, das violas e das cantorias que sempre deixavam as melhores lembranças desse período do ano.
Era grande a ansiedade pra chegar o dia de viajar, justamente porque eu já ia imaginando o dia de tocar com meu irmão e com meu filho, trocar cifras, cantar com eles, mostrar as canções novas e os artistas que eu estava ouvindo ultimamente. Quem é músico sabe que aquela canção que você está tirando no momento é a mais importante do universo. Por isso, sempre rola a preparação pra apresentá-la direitinho, sem erros, pra que todos gostem também.
Durante boa parte do ano eu ficava separando as músicas novas que eu ia aprendendo só pra mostrar nos nossos saraus familiares, onde minha mãe era, fora os músicos, a pessoa que mais se envolvia em receber, de braços e ouvidos abertos, as canções que eu levava. Fosse pelo autor ou cantor que a gente gostava, e o nosso gosto era bem parecido nesse ponto, fosse pelo meu entusiasmo em tocar, minha mãe sempre era o meu primeiro foco nesse quesito.
Naquele ano eu encontrei a Maria Bethânia cantando Guacira. Era uma gravação ao vivo. Assim que eu ouvi fiquei paralisado. Uma canção simples, das mais brejeiras do seu DVD, onde ela era acompanhada por uma viola de doze cordas e ainda tendo Wagner Tiso ao piano. Demais.
Uma canção daquelas que você ouve e, imediatamente, parece muito familiar. Eu até achei que já tinha ouvido antes. Mas não podia ser, o show tinha acabado de sair em temporada pelo país.
Claro que eu quis tocar o mais rápido possível e já me imaginei mostrando pra minha mãe, assim que chegasse no Rio, mesmo faltando ainda três meses pro Natal.
O fato é que desde então eu passei um bom tempo ouvindo e tocando Guacira. Tentava reproduzir todas as nuances da música, mesmo sabendo que havia uma superbanda por trás e aquele piano famoso na gravação. Mesmo assim, fui eu lá na minha insistência, descobrindo os acordes, anotando as passagens e ensaiando sem parar. A tal da transpiração, mais do que a inspiração, que todos os compositores comentam ao falar do processo de criação, é a pura verdade. Ainda mais em se tratando de um músico amador, mequetrefe, como eu.
Três meses cantarolando Guacira onde quer que eu estivesse e, pronto, chegou a hora de ir pro Rio. Me lembro exatamente da fisionomia da minha mãe quando eu cantei a primeira frase: “Adeus Guacira, meu pedacinho de terra”. E logo minha mãe deu um sorrisinho de canto, apertando os lábios, pra depois sorrir abertamente. Quando ela cantou um pedaço comigo, no meio da música, eu fiquei espantado de ela conhecer.
– Mas essa música não é nova, não. Guacira é muito antiga.
– Sério, mãe? Eu achei que era dessas desconhecidas que a Bethânia garimpa por aí, tipo do Almir Sater.
– Filho, essa era a música preferida da sua avó Julia. Ela cantarolava essa música pra você dormir no colo dela, passeando pela casa toda. Ela adorava Guacira.
Eu tinha dois anos quando minha avó morreu. O único retrato que existe dela comigo, eu estou justamente no seu colo. Ela está na varanda da casa e eu, só de short. Segundo a minha mãe, foi tirado momentos antes de eu dormir. Curioso é que, de repente, pra mim aquela foto passou a ter som e é o som da minha avó cantando Guacira.
Pra mostrar que a música era mesmo muito antiga, minha mãe começou a elencar os cantores que ela lembrava que já tinham gravado. Orlando Silva, Silvio Caldas e Inezita Barroso. A divina Elizeth Cardoso também. E mais recentemente o mestre João Gilberto, Emílio Santiago e agora, a Bethânia, em surpreendente resgate.
Da porta do quarto meu pai veio pelas minhas costas e, tentando esconder os olhos marejados, pôs as mãos no meu ombro.
– Eu estava dali da sala só ouvindo você cantar a música da sua vó Julia. Que interessante essa música ter chegado a você desse jeito. Eu mesmo já tinha até esquecido dela. Só me lembrei agora que, entre todos esses cantores, a versão que dona Julia mais gostava era a do Carlos José, um seresteiro, ótimo violonista, também das antigas.
Naquela noite, quando mostrei a canção pro meu irmão e pro meu filho, e enquanto ouvíamos outras histórias sobre a minha avó, das músicas que ela gostava e do famoso retrato comigo, tivemos que cantar juntos, outras vezes, a bela Guacira, como aliás é normal acontecer com as melodias que nos emocionam.
Por fim, é preciso dizer que desde aquele dia, sempre que ouço Guacira, na mesma hora me vem a imagem da minha avó Julia, com um menino nos braços, prestes a dormir sereno, aproveitando o passeio musical por toda a casa.

Epílogo:
Esta crônica não pode ser terminada sem um adendo.
Na verdade, é um agradecimento à família Jordão Ferreira de Mendonça – nossa, ficou chique isso –, dos amigos Deco e Lia, Sofia e Dan. Desde o passamento dos meus pais, em 2015, os saraus de final de ano têm acontecido prazerosamente na casa deles. E é pensando assim, ora no violão do Deco, ora na bela voz da Sossô, que eu hoje projeto as músicas novas que vou aprendendo durante o ano.
Igualzinho como eu fazia com a minha mãe.
Por essa amizade, sou sempre agradecido.

Guacira, de Hekel Tavares e Joracy Camargo.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A Cadeirante


De repente todo mundo parou pra ver onde aquela cadeira ia estacionar. Primeiro, o filho estava lá em cima, na calçada, procurando um caminho melhor pra descer. Assim que ele encontrou não teve dúvida, empinou a mãe na rampinha improvisada e, em poucos minutos, ganhou a areia da praia.
– Réveillon é assim mesmo – logo disse um senhor que acompanhava a cena.
Certo é que todo mundo quer chegar perto do mar e dos fogos. Mesmo aqueles que não têm muita facilidade de locomoção, estando limitados episódica ou permanentemente por uma cadeira de rodas, sempre cultivam alguma disposição de encarar o desafio e, ao final, cada um acaba dando o seu jeito.
No nosso caso aqui tratado, jeito mesmo, quem estava dando, era o filho da cadeirante, que desde o início do mês tentava convencer a mãe a encarar o desafio do último dia do ano. Dizia que era pra vencer as dificuldades do ano velho e se preparar pra todas as que viessem no ano novo. Era pra avançar mesmo, superar os limites. E que ele ia estar ali, ao lado dela, pro que desse e viesse.
Claro que nem todo mundo no entorno aprovou a chegada da tal cadeira de rodas com uma senhora, sendo empurrada por um jovem. Narizes torcidos aqui e acolá, entretanto, não impediram que os simpatizantes da empreitada fizessem todo o esforço pra aprovar publicamente a aventura. Por isso algumas pessoas foram até perto da senhora pra tentar ajudar de alguma maneira, auxiliar no travamento das rodas, e alguns até ofereceram amizade e algumas bebidas e petiscos, itens comuns naquela praia de celebração muito concorrida.
Mostrando certa contrariedade, o casal ao lado fazia comentários acerca de situações perigosas que podiam se configurar em risco, tanto para a cadeirante quanto para as pessoas em redor. Pretendendo mostrar a sua desaprovação, falavam alto e, sem sucesso, procuravam com os olhos outras pessoas que os apoiassem em suas argumentações.
A agenda do réveillon na praia é algo a se considerar. É preciso chegar muito cedo, pra pegar um bom lugar, e a maioria fica por muito tempo ocupando um espaço reduzido, tudo pra poder ver os fogos e toda a festa. Na verdade, o que se sabe é que, tão logo anoitece, não para de chegar gente, vinda de todos os lados. Gente com boa estrutura pra ficar, sentar, comer e beber, e ainda dividir com os amigos ocasionais; e gente que vai com a cara e a coragem, portando somente uma indefectível garrafa de sidra na mão.
O tempo foi passando, a hora da virada chegando e a ansiedade geral, naturalmente, aumentando. Faltava ainda uns 40 minutos pros fogos quando, de repente, uma clareira se abriu no meio do povo. Era uma senhora que carregava uma sacola branca, pelo jeito bem cheia, e que tinha sentido algum problema, provavelmente de pressão. Estava branca, pálida e com alguma dificuldade para respirar. Coisa normal, que acontece na maioria das aglomerações.
Aos poucos, conforme as pessoas iam dando espaço para uma melhor recuperação da mulher debilitada, foi-se percebendo que se tratava do casal que, há pouco, recriminara a presença da mãe cadeirante com o filho na areia da praia.
Todos foram percebendo a fisionomia abatida da pobre, que causava grande aflição no marido, ao mesmo tempo em que se entreolhavam, como se se perguntassem que atitude tomar. Provavelmente, lembraram da má vontade dos dois em aceitar a presença da senhora com a deficiência de locomoção e estavam ali titubeando, quase sem ação.
A mãe então puxou o filho pra perto e disse alguma coisa no ouvido dele. O rapaz, automaticamente, foi até o homem e se ofereceu pra pegar a bolsa pesada que ele havia tirado dos ombros da esposa, deixando-o mais livre pra segurá-la, ampará-la, ante um desmaio que parecia se aproximar.
Quando se deu conta da ação rápida do rapaz, o esposo disse:
– Obrigado. Mas essa bolsa está muito pesada, não se preocupe, pode botar no chão mesmo.
– Tá tudo certo. Minha mãe disse pra apoiar na cadeira de rodas dela e vai ficar tudo bem.
Parece que foi dada uma pausa no tempo. E tudo parou naquela festa. Como se fosse um teatro, estava no sugestivo palco apenas um casal em apuros e dois atores personificando algo que, para alguns, era a própria gentileza. O que se viu em seguida foi uma plateia atenta ao desfecho de uma singela trama. Típica de final de ciclo. Ou de ano, como desejarmos.
A bolsa pesada apoiada na cadeira de rodas, a esposa se restabelecendo, o marido se acalmando, os olhares se harmonizando, as garrafas sendo abertas e os abraços, já fartamente sendo distribuídos.
Aí, o tempo virou.
Quem era de cantar, cantou. Quem era de chorar, chorou.
Zeca, esse nem falou.