segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A Cadeirante


De repente todo mundo parou pra ver onde aquela cadeira ia estacionar. Primeiro, o filho estava lá em cima, na calçada, procurando um caminho melhor pra descer. Assim que ele encontrou não teve dúvida, empinou a mãe na rampinha improvisada e, em poucos minutos, ganhou a areia da praia.
– Réveillon é assim mesmo – logo disse um senhor que acompanhava a cena.
Certo é que todo mundo quer chegar perto do mar e dos fogos. Mesmo aqueles que não têm muita facilidade de locomoção, estando limitados episódica ou permanentemente por uma cadeira de rodas, sempre cultivam alguma disposição de encarar o desafio e, ao final, cada um acaba dando o seu jeito.
No nosso caso aqui tratado, jeito mesmo, quem estava dando, era o filho da cadeirante, que desde o início do mês tentava convencer a mãe a encarar o desafio do último dia do ano. Dizia que era pra vencer as dificuldades do ano velho e se preparar pra todas as que viessem no ano novo. Era pra avançar mesmo, superar os limites. E que ele ia estar ali, ao lado dela, pro que desse e viesse.
Claro que nem todo mundo no entorno aprovou a chegada da tal cadeira de rodas com uma senhora, sendo empurrada por um jovem. Narizes torcidos aqui e acolá, entretanto, não impediram que os simpatizantes da empreitada fizessem todo o esforço pra aprovar publicamente a aventura. Por isso algumas pessoas foram até perto da senhora pra tentar ajudar de alguma maneira, auxiliar no travamento das rodas, e alguns até ofereceram amizade e algumas bebidas e petiscos, itens comuns naquela praia de celebração muito concorrida.
Mostrando certa contrariedade, o casal ao lado fazia comentários acerca de situações perigosas que podiam se configurar em risco, tanto para a cadeirante quanto para as pessoas em redor. Pretendendo mostrar a sua desaprovação, falavam alto e, sem sucesso, procuravam com os olhos outras pessoas que os apoiassem em suas argumentações.
A agenda do réveillon na praia é algo a se considerar. É preciso chegar muito cedo, pra pegar um bom lugar, e a maioria fica por muito tempo ocupando um espaço reduzido, tudo pra poder ver os fogos e toda a festa. Na verdade, o que se sabe é que, tão logo anoitece, não para de chegar gente, vinda de todos os lados. Gente com boa estrutura pra ficar, sentar, comer e beber, e ainda dividir com os amigos ocasionais; e gente que vai com a cara e a coragem, portando somente uma indefectível garrafa de sidra na mão.
O tempo foi passando, a hora da virada chegando e a ansiedade geral, naturalmente, aumentando. Faltava ainda uns 40 minutos pros fogos quando, de repente, uma clareira se abriu no meio do povo. Era uma senhora que carregava uma sacola branca, pelo jeito bem cheia, e que tinha sentido algum problema, provavelmente de pressão. Estava branca, pálida e com alguma dificuldade para respirar. Coisa normal, que acontece na maioria das aglomerações.
Aos poucos, conforme as pessoas iam dando espaço para uma melhor recuperação da mulher debilitada, foi-se percebendo que se tratava do casal que, há pouco, recriminara a presença da mãe cadeirante com o filho na areia da praia.
Todos foram percebendo a fisionomia abatida da pobre, que causava grande aflição no marido, ao mesmo tempo em que se entreolhavam, como se se perguntassem que atitude tomar. Provavelmente, lembraram da má vontade dos dois em aceitar a presença da senhora com a deficiência de locomoção e estavam ali titubeando, quase sem ação.
A mãe então puxou o filho pra perto e disse alguma coisa no ouvido dele. O rapaz, automaticamente, foi até o homem e se ofereceu pra pegar a bolsa pesada que ele havia tirado dos ombros da esposa, deixando-o mais livre pra segurá-la, ampará-la, ante um desmaio que parecia se aproximar.
Quando se deu conta da ação rápida do rapaz, o esposo disse:
– Obrigado. Mas essa bolsa está muito pesada, não se preocupe, pode botar no chão mesmo.
– Tá tudo certo. Minha mãe disse pra apoiar na cadeira de rodas dela e vai ficar tudo bem.
Parece que foi dada uma pausa no tempo. E tudo parou naquela festa. Como se fosse um teatro, estava no sugestivo palco apenas um casal em apuros e dois atores personificando algo que, para alguns, era a própria gentileza. O que se viu em seguida foi uma plateia atenta ao desfecho de uma singela trama. Típica de final de ciclo. Ou de ano, como desejarmos.
A bolsa pesada apoiada na cadeira de rodas, a esposa se restabelecendo, o marido se acalmando, os olhares se harmonizando, as garrafas sendo abertas e os abraços, já fartamente sendo distribuídos.
Aí, o tempo virou.
Quem era de cantar, cantou. Quem era de chorar, chorou.
Zeca, esse nem falou.


Um comentário: