Desde que vim morar em Florianópolis, em 2001,
passar as festas de fim de ano no Rio de Janeiro sempre foi algo mais do que
uma opção. Além dos motivos óbvios da própria festa, do Natal com a família, de
rever os amigos, tinha o capítulo a parte dos saraus, das violas e das
cantorias que sempre deixavam as melhores lembranças desse período do ano.
Era grande a ansiedade pra chegar o dia de
viajar, justamente porque eu já ia imaginando o dia de tocar com meu irmão e
com meu filho, trocar cifras, cantar com eles, mostrar as canções novas e os
artistas que eu estava ouvindo ultimamente. Quem é músico sabe que aquela
canção que você está tirando no momento é a mais importante do universo. Por
isso, sempre rola a preparação pra apresentá-la direitinho, sem erros, pra que
todos gostem também.
Durante boa parte do ano eu ficava separando as
músicas novas que eu ia aprendendo só pra mostrar nos nossos saraus familiares,
onde minha mãe era, fora os músicos, a pessoa que mais se envolvia em receber,
de braços e ouvidos abertos, as canções que eu levava. Fosse pelo autor ou
cantor que a gente gostava, e o nosso gosto era bem parecido nesse ponto, fosse
pelo meu entusiasmo em tocar, minha mãe sempre era o meu primeiro foco nesse
quesito.
Naquele ano eu encontrei a Maria Bethânia
cantando Guacira. Era uma gravação ao vivo. Assim que eu ouvi fiquei
paralisado. Uma canção simples, das mais brejeiras do seu DVD, onde ela era
acompanhada por uma viola de doze cordas e ainda tendo Wagner Tiso ao piano.
Demais.
Uma canção daquelas que você ouve e,
imediatamente, parece muito familiar. Eu até achei que já tinha ouvido antes.
Mas não podia ser, o show tinha acabado de sair em temporada pelo país.
Claro que eu quis tocar o mais rápido possível e
já me imaginei mostrando pra minha mãe, assim que chegasse no Rio, mesmo
faltando ainda três meses pro Natal.
O fato é que desde então eu passei um bom tempo
ouvindo e tocando Guacira. Tentava reproduzir todas as nuances da música, mesmo
sabendo que havia uma superbanda por trás e aquele piano famoso na gravação.
Mesmo assim, fui eu lá na minha insistência, descobrindo os acordes, anotando
as passagens e ensaiando sem parar. A tal da transpiração, mais do que a
inspiração, que todos os compositores comentam ao falar do processo de criação,
é a pura verdade. Ainda mais em se tratando de um músico amador, mequetrefe,
como eu.
Três meses cantarolando Guacira onde quer que eu
estivesse e, pronto, chegou a hora de ir pro Rio. Me lembro exatamente da
fisionomia da minha mãe quando eu cantei a primeira frase: “Adeus Guacira, meu
pedacinho de terra”. E logo minha mãe deu um sorrisinho de canto, apertando os
lábios, pra depois sorrir abertamente. Quando ela cantou um pedaço comigo, no
meio da música, eu fiquei espantado de ela conhecer.
– Mas essa música não é nova, não. Guacira é
muito antiga.
– Sério, mãe? Eu achei que era dessas desconhecidas que
a Bethânia garimpa por aí, tipo do Almir Sater.
– Filho, essa era a música preferida da sua avó
Julia. Ela cantarolava essa música pra você dormir no colo dela, passeando pela
casa toda. Ela adorava Guacira.
Eu tinha dois anos quando minha avó morreu. O
único retrato que existe dela comigo, eu estou justamente no seu colo. Ela está
na varanda da casa e eu, só de short. Segundo a minha mãe, foi tirado momentos
antes de eu dormir. Curioso é que, de repente, pra mim aquela foto passou a ter
som e é o som da minha avó cantando Guacira.
Pra mostrar que a música era mesmo muito antiga,
minha mãe começou a elencar os cantores que ela lembrava que já tinham gravado.
Orlando Silva, Silvio Caldas e Inezita Barroso. A divina Elizeth Cardoso
também. E mais recentemente o mestre João Gilberto, Emílio Santiago e agora, a
Bethânia, em surpreendente resgate.
Da porta do quarto meu pai veio pelas minhas
costas e, tentando esconder os olhos marejados, pôs as mãos no meu ombro.
– Eu estava dali da sala só ouvindo você cantar
a música da sua vó Julia. Que interessante essa música ter chegado a você desse
jeito. Eu mesmo já tinha até esquecido dela. Só me lembrei agora que, entre
todos esses cantores, a versão que dona Julia mais gostava era a do Carlos
José, um seresteiro, ótimo violonista, também das antigas.
Naquela noite, quando mostrei a canção pro meu
irmão e pro meu filho, e enquanto ouvíamos outras histórias sobre a minha avó, das músicas que ela gostava e do famoso retrato comigo, tivemos que cantar juntos, outras vezes, a bela Guacira, como aliás é normal
acontecer com as melodias que nos emocionam.
Por fim, é preciso dizer que desde aquele dia,
sempre que ouço Guacira, na mesma hora me vem a imagem da minha avó Julia, com
um menino nos braços, prestes a dormir sereno, aproveitando o passeio musical
por toda a casa.
Epílogo:
Esta crônica não pode ser terminada sem um
adendo.
Na verdade, é um agradecimento à família Jordão
Ferreira de Mendonça – nossa, ficou chique isso –, dos amigos Deco e Lia, Sofia
e Dan. Desde o passamento dos meus pais, em 2015, os saraus de final de ano têm
acontecido prazerosamente na casa deles. E é pensando assim, ora no violão do
Deco, ora na bela voz da Sossô, que eu hoje projeto as músicas novas que vou
aprendendo durante o ano.
Igualzinho como eu fazia com a minha mãe.
Por essa amizade, sou sempre agradecido.
Guacira, de Hekel Tavares e Joracy Camargo.
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