Eu tinha uns 20 anos e estava ainda no meu
segundo emprego. Me lembro bem dele porque eu dava graças por não ser obrigado
a ficar o dia todo sentado atrás de uma mesa.
Depois de um tempo, contudo, de tanto que eu
andava pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, naquele solão tropical que
durava o ano todo, passei a entender que era normal quando surgia um súbito desejo
de ficar quietinho, trabalhando em uma mesinha, dentro de um escritório.
Um dos lugares que eu ia muito era uma galeria comercial
que ficava no subsolo de um grande edifício. Eu ia deixar e buscar cópias
variadas, de publicações, livros, revistas e jornais, plantas de arquitetura,
fotos e até de desenhos feitos à mão. A galeria era muito movimentada e muitas
vezes eu ficava ali nos corredores, enquanto esperava que as cópias fossem
terminadas, pra que eu pudesse levá-las de volta.
Nessas horas eu ficava andando de um lado pro
outro, olhando sem ver, várias vitrines, de temas os mais variados possíveis,
desde a fachada de uma alfaiataria, a loja de cigarros e charutos importados
que também consertava canetas, e até uma confecção, especializada em uniformes e
bandeiras. O tempo voava enquanto eu ficava ali, tentando adivinhar de onde era
cada emblema ou brasão, no interminável cartaz com as bandeiras de todos os
estados do Brasil e também de todos os países do mundo.
Uma dessas vezes eu notei um rapaz, que devia
ter a minha idade, parado um tempão, olhando uma vitrine um pouco mais longe,
perto da escada rolante. Foi nesse dia que eu descobri que ali na entrada ficava
uma galeria de arte, cujas paredes eram cheias de quadros pendurados, com focos
de luzes e as obras expostas.
De tanto ver o mesmo rapaz diante daquele quadro
em destaque no cavalete da vitrine, uma hora eu fui lá também dar uma olhada.
Era uma pintura quase toda branca, com algumas poucas texturas feitas da
própria tinta, acho eu, e com umas cores esmaecidas, mas tudo reunido em um
pequeno espaço da tela, fora do centro. Na minha leiguice, caso perguntado, diria
que se tratava da vista aérea de um povoado, no norte do Polo Norte, coberto de
neve, com umas poucas luzes tremeluzentes a guiar a longa noite pela mão.
Então o atendente da galeria veio até a porta e
ficou ao meu lado, de frente para a mesma tela, como se eu fosse o menino do
Galeano a pedir “me ajuda a olhar?”. Ele me deu algumas informações que eu
jamais saberia repetir, mas uma coisa qualquer no meio de uma frase, que fazia
referência a imagens abstratas eu consegui perceber e fiquei uns dias
refletindo sobre a possibilidade que as pessoas têm de, livremente, interpretar
e fazer suposições sobre a Arte, cada um a seu modo.
Muitas vezes eu me perguntava o que o tal rapaz
teria visto naquele quadro que tanto o atraía. Isso porque várias outras vezes
eu o vi ali, diante da mesma vitrine, olhando e olhando, procurando ângulos, se
afastando e depois se aproximando, em movimentos sutis e demorados, como se
quisesse entrar naquela sugerida cidade nevada.
Teve um dia que eu fui levar as cópias até o
escritório, depois voltei pra galeria com outros pedidos e encontrei o rapaz
ainda lá, perdido em seus pensamentos, com suas ideias, na mesma vitrine.
Surpreso e confuso, aquilo tudo me levava a
intuir que, mais do que a imagem, era o sentimento que o rapaz nutria por
aquele quadro, por aquela imagem, que tornava tudo especial. Talvez se ele
também fosse perguntado, quem sabe até apontasse algo que ninguém conseguisse
ver ou sentir. E eu passei a invejar o tal rapaz.
Ficava de longe, tentando perscrutar, penetrar
na sua fisionomia para, quem sabe, fisgar algum sinal, alguma pista que me
levasse a ter o mesmo sentimento, a mesma sensibilidade. Pensava comigo: por
que ele consegue e eu não? O que ele vê, afinal? O que eu tenho de fazer pra
ver também? Às vezes eu tinha o ímpeto de ir falar com ele, de perguntar tudo,
ou nada, mas logo via novamente a sua conexão com o quadro e isso me impedia,
me travava, sendo que só me restava ficar olhando, admirando a cena, como algo
que jamais fosse acontecer comigo.
Muitos quadros passaram por mim, e eu por eles,
desde então. Muitas telas abstratas, muitas telas famosas, outras nem tanto, de
autoria de muitos pintores idem.
Distante daqueles anos 1980, anos sem
computadores, no final de 1998 um amigo do trabalho me chamou pra ver um texto
na sala dele. Assim que eu entrei, enquanto ele mostrava o trecho para o qual
queria a minha revisão, eu não consegui tirar o olho de uma imagem na tela do
seu computador.
Era uma obra do pintor suíço Arnold Böcklin, que
morreu em 1901.
Não só pela sua influência ao surrealismo, que
ainda nasceria, nem mesmo pelas suas imagens fantásticas e mitológicas, tampouco
por sua obra ter sido fonte de inspiração para muitos artistas, incluindo o
compositor Rachmaninov, aquela tela, desde o primeiro momento, desde sempre,
falava comigo, me inspirava, ao mesmo tempo me dava medo, me atraía, surgia nos
meus sonhos, me enlevava enfim. Era mágica. Era música.
A cena está longe de ser uma abstração.
Vemos um barco pequeno, uma canoa. Leva uma
figura de branco, de pé, em direção a uma pequena ilha rochosa com árvores altas
e esguias ao centro, cercada por um imenso e calmo oceano.
Foi pintada em 1883.
Seu nome é A Ilha dos Mortos.
Finalmente, eu compreendia o jovem rapaz da
galeria.
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