quinta-feira, 16 de abril de 2020

A Ilha dos Mortos


Eu tinha uns 20 anos e estava ainda no meu segundo emprego. Me lembro bem dele porque eu dava graças por não ser obrigado a ficar o dia todo sentado atrás de uma mesa.
Depois de um tempo, contudo, de tanto que eu andava pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, naquele solão tropical que durava o ano todo, passei a entender que era normal quando surgia um súbito desejo de ficar quietinho, trabalhando em uma mesinha, dentro de um escritório.
Um dos lugares que eu ia muito era uma galeria comercial que ficava no subsolo de um grande edifício. Eu ia deixar e buscar cópias variadas, de publicações, livros, revistas e jornais, plantas de arquitetura, fotos e até de desenhos feitos à mão. A galeria era muito movimentada e muitas vezes eu ficava ali nos corredores, enquanto esperava que as cópias fossem terminadas, pra que eu pudesse levá-las de volta.
Nessas horas eu ficava andando de um lado pro outro, olhando sem ver, várias vitrines, de temas os mais variados possíveis, desde a fachada de uma alfaiataria, a loja de cigarros e charutos importados que também consertava canetas, e até uma confecção, especializada em uniformes e bandeiras. O tempo voava enquanto eu ficava ali, tentando adivinhar de onde era cada emblema ou brasão, no interminável cartaz com as bandeiras de todos os estados do Brasil e também de todos os países do mundo.
Uma dessas vezes eu notei um rapaz, que devia ter a minha idade, parado um tempão, olhando uma vitrine um pouco mais longe, perto da escada rolante. Foi nesse dia que eu descobri que ali na entrada ficava uma galeria de arte, cujas paredes eram cheias de quadros pendurados, com focos de luzes e as obras expostas.
De tanto ver o mesmo rapaz diante daquele quadro em destaque no cavalete da vitrine, uma hora eu fui lá também dar uma olhada. Era uma pintura quase toda branca, com algumas poucas texturas feitas da própria tinta, acho eu, e com umas cores esmaecidas, mas tudo reunido em um pequeno espaço da tela, fora do centro. Na minha leiguice, caso perguntado, diria que se tratava da vista aérea de um povoado, no norte do Polo Norte, coberto de neve, com umas poucas luzes tremeluzentes a guiar a longa noite pela mão.
Então o atendente da galeria veio até a porta e ficou ao meu lado, de frente para a mesma tela, como se eu fosse o menino do Galeano a pedir “me ajuda a olhar?”. Ele me deu algumas informações que eu jamais saberia repetir, mas uma coisa qualquer no meio de uma frase, que fazia referência a imagens abstratas eu consegui perceber e fiquei uns dias refletindo sobre a possibilidade que as pessoas têm de, livremente, interpretar e fazer suposições sobre a Arte, cada um a seu modo.
Muitas vezes eu me perguntava o que o tal rapaz teria visto naquele quadro que tanto o atraía. Isso porque várias outras vezes eu o vi ali, diante da mesma vitrine, olhando e olhando, procurando ângulos, se afastando e depois se aproximando, em movimentos sutis e demorados, como se quisesse entrar naquela sugerida cidade nevada.
Teve um dia que eu fui levar as cópias até o escritório, depois voltei pra galeria com outros pedidos e encontrei o rapaz ainda lá, perdido em seus pensamentos, com suas ideias, na mesma vitrine.
Surpreso e confuso, aquilo tudo me levava a intuir que, mais do que a imagem, era o sentimento que o rapaz nutria por aquele quadro, por aquela imagem, que tornava tudo especial. Talvez se ele também fosse perguntado, quem sabe até apontasse algo que ninguém conseguisse ver ou sentir. E eu passei a invejar o tal rapaz.
Ficava de longe, tentando perscrutar, penetrar na sua fisionomia para, quem sabe, fisgar algum sinal, alguma pista que me levasse a ter o mesmo sentimento, a mesma sensibilidade. Pensava comigo: por que ele consegue e eu não? O que ele vê, afinal? O que eu tenho de fazer pra ver também? Às vezes eu tinha o ímpeto de ir falar com ele, de perguntar tudo, ou nada, mas logo via novamente a sua conexão com o quadro e isso me impedia, me travava, sendo que só me restava ficar olhando, admirando a cena, como algo que jamais fosse acontecer comigo.
Muitos quadros passaram por mim, e eu por eles, desde então. Muitas telas abstratas, muitas telas famosas, outras nem tanto, de autoria de muitos pintores idem.
Distante daqueles anos 1980, anos sem computadores, no final de 1998 um amigo do trabalho me chamou pra ver um texto na sala dele. Assim que eu entrei, enquanto ele mostrava o trecho para o qual queria a minha revisão, eu não consegui tirar o olho de uma imagem na tela do seu computador.
Era uma obra do pintor suíço Arnold Böcklin, que morreu em 1901.
Não só pela sua influência ao surrealismo, que ainda nasceria, nem mesmo pelas suas imagens fantásticas e mitológicas, tampouco por sua obra ter sido fonte de inspiração para muitos artistas, incluindo o compositor Rachmaninov, aquela tela, desde o primeiro momento, desde sempre, falava comigo, me inspirava, ao mesmo tempo me dava medo, me atraía, surgia nos meus sonhos, me enlevava enfim. Era mágica. Era música.
A cena está longe de ser uma abstração.
Vemos um barco pequeno, uma canoa. Leva uma figura de branco, de pé, em direção a uma pequena ilha rochosa com árvores altas e esguias ao centro, cercada por um imenso e calmo oceano.
Foi pintada em 1883.
Seu nome é A Ilha dos Mortos.
Finalmente, eu compreendia o jovem rapaz da galeria.



A Ilha dos Mortos - Arnold Böcklin - 1883
Óleo sobre Madeira - 80 x 150cm
Alte Nationalgalerie - Berlim/ALE


Nenhum comentário:

Postar um comentário