terça-feira, 28 de abril de 2020

O Pneu Furado


Eu só compreendi que meu grande amigo da faculdade tinha uma noiva, quando ele me disse que pertencia à Igreja Batista. Noivar não é algo comum já há algum tempo, mas, para meu convencimento, bastou que eu imaginasse a imposição da tradição e a fidelidade das escrituras pra alcançar a normalidade de que, sim, ele era noivo. Ele era noivo da Eremilce e ponto.
O curso de jornalismo que a gente fazia era no período noturno durante a semana, mas, aos sábados, nossas aulas eram pela manhã. E era nesses sábados que o casal, meu amigo e sua noiva, ia junto pra faculdade e depois saía pra passear e aproveitar o fim de semana.
Uma colega de turma havia marcado uma celebração pelo seu aniversário naquela tarde e muita gente foi de carro pra faculdade, com a intenção de seguir pro barzinho, já previamente combinado, assim que acabasse a aula.
Foi então que ele me ofereceu uma carona, dizendo que depois me levaria em casa, mesmo sendo fora de mão do bairro dele. Disse que gostava de dirigir nos finais de semana, porque as ruas eram “mais amigáveis” para um motorista amigável como ele. A gente riu e eu aceitei.
Rodamos pouco mais de 15 minutos e ele disse:
– Ih, gente, acho que o pneu furou. Tô sentindo a direção puxando. Deve ser o pneu.
Eu não compreendi direito aquele olhar alegre da noiva dele, e posso até jurar que ela sorriu de contentamento quando ouviu aquilo e percebeu que o noivo subia na calçada pra verificar. Então, quando veio a confirmação do furo, ele entrou de novo no carro e disse que ia arranjar um lugar melhor, mais tranquilo de trânsito, pra poder trocar o pneu. E de novo, eu poderia jurar que vi a menina ali, ao lado dele, juntando as palmas das mãos na vertical, perto do rosto, como se pedisse um favor ou um presente.
Era final da década de 1980 e os pneus ainda tinham câmara de ar. Por isso é que eles furavam muito e que ainda havia muitas lojas de borracharia pelos caminhos da cidade. Então o plano era só colocar o estepe e depois procurar o borracheiro mais próximo.
No momento em que saímos do carro, meu amigo me chamou de lado e sussurrou:
– Vou te pedir um favor meio estranho. Quem vai trocar o pneu é a Eremilce. Ela gosta de trocar pneu, não me pergunte porque, e ela sempre troca até do carro do pai dela. É tranquilo. No início eu também achava estranho. Mas a gente deixa ela fazer tudo sozinha, tudo tranquilo e sem problema, tá?
Eu demorei um tempo até digerir aquelas informações. Mas o que ajudou bastante, nesse processo, foi eu constatar a desenvoltura da noiva com o trabalho que ia ser feito. Primeiro, por ela saber onde estava a chave de rodas. Depois, a destreza e a força pra afrouxar os parafusos, separar o pneu furado, colocar na mala, trazer o estepe pro lugar e apontar os parafusos. Sério, até aquele jeitinho com os pés, pra sustentar o pneu enquanto faz o reaperto, pra ficar alinhado com os furos da roda, até isso ela fez. E com a maior naturalidade.
Nada natural foi a minha postura, pois eu estava incomodado com a possibilidade de alguém que passasse por ali e se deparasse com dois homens parados, olhando a vida passar, enquanto uma jovem noiva trocava o pneu do carro. Eu já estava me preparando pra dar razão a qualquer sujeito que nos xingasse ou fizesse troça da nossa condição contemplativa.
Para mim, os carros que vinham e notavam aquela cena, certamente, àquela altura já estavam comentando sobre nós, nos acusando de machistas, sei lá, até de coisa pior. Eu sentia que muitas pessoas, nos bancos traseiros dos veículos, até se viravam pra trás, pra checar se era mesmo aquilo que estava acontecendo.
Com toda a eficiência, a noiva finamente baixou o macaco e lembrou de dar o aperto final no pneu trocado, coisa que eu estava apostando comigo mesmo que ela não ia fazer. Perdi. E a menina, inclusive, se mostrou bem familiarizada com o movimento de subir na chave de rodas e usar o próprio peso para o arremate final do serviço.
Entramos no carro depois de ela guardar, devidamente, tudo na mala. Foi nessa hora, no momento em que sentou ao lado do motorista, que ela fez o gesto definitivo, gesto que eu guardo na memória até hoje, com todos os detalhes. Ciente de que estava com as mãos sujas a noiva deu um suspiro e passou levemente o antebraço na testa, um gesto típico de quem acabou de trocar um pneu e que precisava arrumar os cabelos e os óculos, sem usar as mãos. Naturalmente.
Não deu cinco minutos e chegamos ao borracheiro, que ficava em um posto de gasolina logo à frente. Depois que meu amigo abriu a mala, apontando onde estava o pneu furado ao atendente, a moça interrompeu a conversa e perguntou onde poderia lavar as mãos.
Na verdade, aquela era uma pergunta simples. O problema é que, enquanto ela perguntava, mostrava as mãos e os braços sujos de preto, bem preto, como é a sujidade de quem acabou de trabalhar com pneus. No mesmo instante o borracheiro olhou para cada um de nós, para as nossas mãos, e viu que as dos rapazes estavam limpas.
Abanando a cabeça, o borracheiro olhou de novo para a menina e disse suavemente:
– Olha moça, entra ali na loja do posto e fala com a dona Susana, no caixa. Pede a ela pra te mostrar o banheiro dos funcionários e diz que fui eu que mandei. Vai lá, vai. Não vai usar o banheiro dos clientes não, tadinha.
Aquele “tadinha” no final da frase é que levou tudo a perder. Eu gelei dos pés à cabeça só me imaginando, eu, junto com meu amigo, obrigando a noiva dele a trocar o pneu do carro. Pois era isso o que o homem estava pensando naquele exato momento.
Quando ela voltou, toda alegre, e nós entramos no carro, ainda ouvimos algum resmungo do borracheiro que ia ficando pra trás. Na certa ele deve estar repetindo aquele “tadinha” outras tantas vezes – pensei eu, amuado.


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