sexta-feira, 29 de maio de 2020

O Disco


Sempre que eu tento cantarolar uma música, da qual não sei muito bem a letra, acabo por ficar preso a uns poucos versos, repetindo-os por horas a fio, trocando algumas palavras aqui e ali e tentando achar o fio da meada da letra. Nessas horas alguém diria “coitado de quem fica do seu lado, ouvindo sem parar, só esses pedaços de música”.

Realmente, era isso que estava acontecendo naquela semana. Exatamente. Eu não lembro direito dos detalhes, mas, coitada da minha mãe e do meu pai por terem aguentado me ouvir cantando Only Yesterday por dias seguidos.

Os Carpenters, uma dupla de irmãos cantores e compositores, estavam no auge em meados dos anos 1970 e, a cada lançamento, algumas lojas faziam questão de mostrar que já tinham o disco. Outras botavam cartazes na porta, informando a data exata que as vendas iam começar, fazendo com que todo mundo ficasse doido pra chegar aquele dia.

Na escola não se falava em outra coisa e todos os colegas tinham o seu plano pra comprar Only Yesterday, assim que chegasse na loja. Metade dos alunos contava os dias e a outra metade contava o dinheiro, pra ver se ia dar pra juntar até a fatídica data.

O meu caso era o segundo. Por isso os lanches, durante o recreio, foram abolidos sumariamente enquanto não chegasse à quantia certa, que eu, claro, hoje, não me lembro mais qual era. Todos os dias, no final da aula, eu contava o dinheiro e guardava de novo na mesinha do quarto.

A gente não tinha muitos discos em casa. Mas os que tinha a gente ouvia muito. Até furar, como dizia na época. De Elizeth Cardoso a Johnny Mathis, era uma coleção que passava por todos os clássicos da Bossa Nova e tinha ainda, claro, a Elis, que lá em casa era cultuada como uma santa sem altar.

Como a minha contabilidade não era assim, tão apurada, só no dia marcado para a compra foi que eu percebi que tinha esquecido de juntar o dinheiro da passagem até a loja. Eu tinha o bastante para o disco, mas não tinha lembrado de somar o das passagens de ônibus, que não eram caras, mas ia fazer falta se eu tirasse.

Eu morava em Ramos e a loja era em Bonsucesso, o bairro ao lado, o que daria uns 6 quilômetros de casa até o bazar onde vendia o disco. Minhas opções eram juntar mais algum, pra passagem, e comprar o disco uns dias depois, ou ir a pé, no dia tão esperado. Assim que eu imaginei todo mundo na escola falando do disco, que já tinham ouvido, que a capa era linda etc, não tive dúvida, peguei meus caraminguás e parti pra loja.

Estava no início ainda do caminho quando passei pelo riquinho da rua. Jorge Henrique era o nome dele. Na verdade ninguém era rico ali, já que estamos falando do subúrbio do Rio de Janeiro, mas esse era um garoto que sempre tinha os uniformes completos dos times, nas peladas do futebol de salão, e que tinha os tênis mais bonitos e os meiões mais novinhos, o que fazia com que todos nós ficássemos olhando pra ele enquanto nos vestíamos pro jogo.

Assim que o cumprimentei ele falou que estava “indo comprar o disco dos Carpenters” e, se outra coisa disse, eu nem ouvi. Só sabia que não ia querer ir com ele até a loja, até porque ele ia de ônibus, com certeza, e eu não ia querer dizer que não tinha o dinheiro da passagem. Então, acho que respondi algo automático e ele foi pro outro lado, enquanto eu tomava o caminho da loja de discos. Nem pensei na possibilidade de o encontrar lá porque, se ele ia de ônibus, não havia a menor chance.

Melhor assim, esses riquinhos não valem nada, pensei enquanto caminhava. E ia alegre, cantando o mesmo pedaço de música, que era só o que eu lembrava.

O vendedor contou o meu dinheiro no balcão e fez a velha piada, perguntando se eu tinha roubado as ofertas da igreja. Eram muitas notas pequenas e moedas, que eu levei com todo o cuidado num saco plástico. Perguntou ainda se era pra presente e eu disse que sim, porque, depois daquele esforço todo não fazia o menor sentido eu levar os Carpenters pra casa de qualquer jeito ou num embrulho comum.

O caminho pra casa foi bem mais curto do que o da ida. Eu voltei pelo mesmo trajeto, mas me pareceu bem mais rápido. Talvez por eu estar mais tranquilo por tudo ter dado certo na compra, coisa que na ida eu não tinha tanta certeza assim.

Chegar em casa, abrir o pacote e botar o disco pra tocar no nosso Três em Um foi demais. Aquela tarde foi bem legal e de noite eu ouvi a música junto com a minha mãe, depois que ela elogiou a minha força de vontade por ter juntado o dinheiro pra compra.

Eu ia contar que tinha encontrado o Jorge Henrique na ida pra loja e que tinha dado um drible nele, pela minha vergonha de não ter o dinheiro pro ônibus. Mas na mesma hora que eu ia começar ela disse que ele tinha passado lá em casa, perguntando por mim.

– Mas eu passei por ele um pouco antes! O que ele queria?

– Disse que o pai ia levar ele na loja de discos e vieram te chamar pra te dar uma carona.

Minha mãe sacou que eu fiquei pensativo por um bom tempo, depois de ouvir aquilo.

Tudo o que ela podia ter me falado sobre preconceito - meu preconceito - com o tal garoto riquinho, que afinal não era culpado por ter o tênis e o meião que tinha, ela resumiu num simples olhar, um inesquecível olhar, enquanto me dizia:

– Legal ele, né?

– O quê, o disco?

– Sim, o disco. E o seu amigo também!


Inesquecível.

Aquele dia. Aquele disco dos Carpenters.

E aquele olhar da minha mãe também!



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