Era um sábado modorrento, de chuva fina e vento forte, desses que incomoda, principalmente a pessoas como eu, de cabelo parco e rebelde.
O exame estava marcado para as 10 horas e todo o esforço pra acordar ainda estava martelando a minha cabeça, me perguntando a todo momento porque eu aceitei marcar naquele dia, naquele horário, quando todo mundo ainda aproveitava o sono preguiçoso e vadio, sem despertador.
Passei na portaria, fiz o protocolo de autenticação do plano de saúde na recepção do consultório e me indicaram a sala de espera. Na sala já aguardava uma senhora com sua filha, também quase senhora, ocupando a terceira fila, e um rapaz, sentado na primeira fileira de cadeiras, umas livres outras interditadas com fita amarela.
Eu fiquei na linha das duas senhoras e assim que me acomodei percebi que o rapaz estava com o celular na mão. Seu aparelho emitia insistentemente diversos avisos sonoros, alguns bem conhecidos, e provavelmente vinham dos aplicativos de comunicação, muito comuns hoje em dia. Seus sons variam de marca pra marca, a depender do volume e dos toques escolhidos.
No caso do nosso rapaz posso afirmar que o som estava definitivamente incomodando o recinto. As duas mulheres já demonstravam, sem quaisquer restrições, suas insatisfações com o barulho que soava a cada mensagem trocada ou respondida, e a cada vídeo que era aberto. O mais curioso, naquela circunstância de inconveniente quebra de silêncio em um ambiente hospitalar, era que o evidente importuno sequer era percebido pelo rapaz, ali obnubilado no seu mundo virtual particular.
Eu já estava prestes a me juntar aos protestos silenciosos das duas pacientes quando entra na sala de espera uma outra mulher, trazendo pela mão o seu filho, de idade próxima dos oito anos, eu diria. O menino tinha um dos braços engessado, pendurado numa tipoia, mas, mesmo assim, trazia na mão um singelo tablet que, ao sentar foi imediatamente sacado, ligado e todos notamos que o braço interditado não fazia a menor diferença para o garoto, para o joguinho que já se desenrolava, com sons de motores, freadas, pneus cantando, algumas vozes gritando e um sininho irritante que parecia uma contagem de pontos, ou algo assim.
Não deu nem tempo de a gente piscar e a mãe botou sua bolsa na cadeira ao lado e tomou o tablet da mão do filho:
– Na... na... não! Vamos tirar o som dessa coisa agora.
– Mas, mãe?
– Não tem mãe nem meia mãe. Esse som vai incomodar as outras pessoas. De jeito nenhum. Além do mais isso aqui é um hospital, tem que manter o silêncio. Vamos tirar todo o som ou então desligar o tablet.
A mãe olhou pra trás, pediu desculpas às duas outras mulheres e depois fez um gesto com a cabeça na minha direção. Eu retribuí o aceno dela e, quando cruzei o olhar com as demais pacientes, notei que todos nós tínhamos uma pergunta na garganta, que estava suspensa, flutuando no ar daquele consultório.
No mesmo instante o rapaz da primeira fila se virou pra trás, pausadamente. Estendeu a palma da mão pra mim e depois fez o mesmo gesto para as demais, sendo que cada uma respondeu ao seu jeito, e com alguma simpatia.
Ele então se voltou pra frente, de novo devagar, e silenciou o telefone, guardando-o em seguida no bolso da jaqueta. A pergunta flutuante estava devidamente respondida.
Não dá pra negar que eu fiquei morrendo de saudades da minha mãe. Aquela frase “não tem mãe nem meia mãe” era típica dela. Vai ver era típica de muitas mães. E enquanto eu fiquei esperando pra ser atendido, várias outras frases dela passaram pela minha lembrança.
Se a vida fosse um filme e eu o diretor – coisa que eu recorrentemente me pego em desvario, imaginando orientar cada ator no seu papel – a cena terminaria com um abraço das duas mulheres no rapaz. Elas dizendo que estavam a ponto de se queixar, pedir mesmo pra ele diminuir o som, mas que nem sempre a reação das pessoas é de compreensão e paz. O rapaz, por sua vez, ainda desconcertado, diria que nem havia se tocado da situação e que estava envergonhado por tudo aquilo. Ao final, ele sublinharia que, se sua mãe estivesse ali, ia dar nele a maior bronca da história, por ter sido egoísta e não ter percebido as pessoas em volta.
A cena terminaria com uma feliz sensação coletiva de alívio da nossa parte.
Primeiro, pela resposta à pergunta crucial.
Segundo, pelo fato de ele ter mãe.
E que falta faz uma mãe.
E que falta me faz a minha mãe!