quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Sobre Mães e Filhos

 

Era um sábado modorrento, de chuva fina e vento forte, desses que incomoda, principalmente a pessoas como eu, de cabelo parco e rebelde.

O exame estava marcado para as 10 horas e todo o esforço pra acordar ainda estava martelando a minha cabeça, me perguntando a todo momento porque eu aceitei marcar naquele dia, naquele horário, quando todo mundo ainda aproveitava o sono preguiçoso e vadio, sem despertador.

Passei na portaria, fiz o protocolo de autenticação do plano de saúde na recepção do consultório e me indicaram a sala de espera. Na sala já aguardava uma senhora com sua filha, também quase senhora, ocupando a terceira fila, e um rapaz, sentado na primeira fileira de cadeiras, umas livres outras interditadas com fita amarela.

Eu fiquei na linha das duas senhoras e assim que me acomodei percebi que o rapaz estava com o celular na mão. Seu aparelho emitia insistentemente diversos avisos sonoros, alguns bem conhecidos, e provavelmente vinham dos aplicativos de comunicação, muito comuns hoje em dia. Seus sons variam de marca pra marca, a depender do volume e dos toques escolhidos.

No caso do nosso rapaz posso afirmar que o som estava definitivamente incomodando o recinto. As duas mulheres já demonstravam, sem quaisquer restrições, suas insatisfações com o barulho que soava a cada mensagem trocada ou respondida, e a cada vídeo que era aberto. O mais curioso, naquela circunstância de inconveniente quebra de silêncio em um ambiente hospitalar, era que o evidente importuno sequer era percebido pelo rapaz, ali obnubilado no seu mundo virtual particular.

Eu já estava prestes a me juntar aos protestos silenciosos das duas pacientes quando entra na sala de espera uma outra mulher, trazendo pela mão o seu filho, de idade próxima dos oito anos, eu diria. O menino tinha um dos braços engessado, pendurado numa tipoia, mas, mesmo assim, trazia na mão um singelo tablet que, ao sentar foi imediatamente sacado, ligado e todos notamos que o braço interditado não fazia a menor diferença para o garoto, para o joguinho que já se desenrolava, com sons de motores, freadas, pneus cantando, algumas vozes gritando e um sininho irritante que parecia uma contagem de pontos, ou algo assim.

Não deu nem tempo de a gente piscar e a mãe botou sua bolsa na cadeira ao lado e tomou o tablet da mão do filho:

– Na... na... não! Vamos tirar o som dessa coisa agora.

– Mas, mãe?

– Não tem mãe nem meia mãe. Esse som vai incomodar as outras pessoas. De jeito nenhum. Além do mais isso aqui é um hospital, tem que manter o silêncio. Vamos tirar todo o som ou então desligar o tablet.

A mãe olhou pra trás, pediu desculpas às duas outras mulheres e depois fez um gesto com a cabeça na minha direção. Eu retribuí o aceno dela e, quando cruzei o olhar com as demais pacientes, notei que todos nós tínhamos uma pergunta na garganta, que estava suspensa, flutuando no ar daquele consultório.

No mesmo instante o rapaz da primeira fila se virou pra trás, pausadamente. Estendeu a palma da mão pra mim e depois fez o mesmo gesto para as demais, sendo que cada uma respondeu ao seu jeito, e com alguma simpatia.

Ele então se voltou pra frente, de novo devagar, e silenciou o telefone, guardando-o em seguida no bolso da jaqueta. A pergunta flutuante estava devidamente respondida.

Não dá pra negar que eu fiquei morrendo de saudades da minha mãe. Aquela frase “não tem mãe nem meia mãe” era típica dela. Vai ver era típica de muitas mães. E enquanto eu fiquei esperando pra ser atendido, várias outras frases dela passaram pela minha lembrança.

Se a vida fosse um filme e eu o diretor – coisa que eu recorrentemente me pego em desvario, imaginando orientar cada ator no seu papel – a cena terminaria com um abraço das duas mulheres no rapaz. Elas dizendo que estavam a ponto de se queixar, pedir mesmo pra ele diminuir o som, mas que nem sempre a reação das pessoas é de compreensão e paz. O rapaz, por sua vez, ainda desconcertado, diria que nem havia se tocado da situação e que estava envergonhado por tudo aquilo. Ao final, ele sublinharia que, se sua mãe estivesse ali, ia dar nele a maior bronca da história, por ter sido egoísta e não ter percebido as pessoas em volta.

A cena terminaria com uma feliz sensação coletiva de alívio da nossa parte.

Primeiro, pela resposta à pergunta crucial.

Segundo, pelo fato de ele ter mãe.

E que falta faz uma mãe.

E que falta me faz a minha mãe!



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O General e a Bicicleta


Quando eu morava no bairro de Coqueiros, em Florianópolis, o meu condomínio tinha um bicicletário todo bem organizado, com os suportes para prender as bikes e até câmera de vigilância, esta milimetricamente instalada de modo a cobrir todo o perímetro e não deixar nenhum ponto cego.

Mesmo assim, numa certa manhã, a roda da frente da minha bicicleta desapareceu. A bike estava inteira, não havia qualquer outro dano, nem ao quadro e nem ao cadeado, que pareciam estar perfeitos, sem quaisquer sinais de avaria.

Minhas esperanças de achar o culpado, provavelmente um ilustre vizinho, foram se esvaindo pouco a pouco depois da informação do síndico de que a tal câmera de vigilância estava quebrada. Ele combinou comigo que ia perguntar ao porteiro da noite e qualquer coisa me avisaria.

O zelador então veio me consolar:

– Eu trabalho aqui há muitos anos e nunca vi coisa assim nesse condomínio. O que é isso, gente? Roubar uma roda de bicicleta? Do vizinho? É o fim do mundo.

Depois ele pensou, pensou, tirou o chapéu e fez um ruído de desaprovação com a boca.

– Olha, eu vou investigar pro senhor. Tem uma rapaziada aqui dentro que eu já estou de olho. Faz tempo que estou com um deles bem aqui na mira. Então, vou ver o que eu consigo e te falo depois.

Eu disse um obrigado automático, sem ligar muito pro termo “investigar” dele.

Naquela mesma semana o zelador já me veio com uma informação.

– Aquele rapaz que eu estava desconfiado, que eu achava que podia ter surrupiado a sua roda? Pois não foi ele não. Eu mesmo falei com o sujeito e o cara disse que não foi ele.

– Como assim? Você perguntou pra ele?

– Isso mesmo. Perguntei: Foi você que roubou a roda da bicicleta do rapaz do 402?

– E aí?

– Aí ele disse que não. Não fui eu que roubei, não, ele disse.– Ah, então você perguntou se era ele o ladrão da roda da bike. Foi isso?

– Exatamente. E ele disse que não foi ele.

Eu não sabia se ria ou se chorava. Se corria ou se ficava. Na verdade, fiquei olhando pra cara do zelador um bom tempo, achando que a qualquer momento ele ia dizer que era uma pegadinha e ia começar a rir de mim. Mas isso não aconteceu. Era sério. Pra ele, pelo menos.

Isso já tem uns bons 10 anos e eu já nem me lembrava direito. Acontece que hoje, inadvertidamente, tudo voltou à minha memória quando eu abri o site de um grande jornal, um ícone do que há de melhor na imprensa nacional, e lá estava escrita a seguinte manchete: General nega ao STF que ABIN produziu relatórios para ajudar o filho do presidente.

Imediatamente imaginei o general explicando que, por sua própria e fulgurante iniciativa, teria batido na porta da ABIN e perguntado diretamente ao próprio chefe da agência sobre os tais relatórios auxiliares. Ao que o chefe, ele mesmo, em pessoa, teria afirmado categoricamente que não fora produzido qualquer documento para auxiliar os advogados daquele bom filho. A matéria se encerrava com a ministra do STF anunciando que usar um órgão do governo federal com finalidade particular é crime.

Naquele exato momento eu concluí que não há qualquer diferença, pelo menos no que se refere a intelecto e discernimento, entre os zeladores e os generais, com todo o respeito aos zeladores.

Pois veja, se o zelador do meu prédio, que investigou aquele roubo da roda da minha bicicleta, estivesse agora investigando essa ocorrência do auxílio-relatório, penso que já estaria tudo devidamente resolvido. Ora, ora, muito simples: se o general do GSI perguntou ao chefe da ABIN e à PGR se eles cometeram um crime e eles disseram que não, poxa, quem vai duvidar? É um caso a ser encerrado, sumariamente.

No despacho, teríamos arquive-se.

Ou melhor queime-se. O jornal, a denúncia, a apuração, com o STF, com tudo.

Senão, vai que alguém descobre que a bomba explodiu dentro do carro, bem no colo do sargento...



terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Herói

 

Lá em casa sempre teve muita música. Minha mãe vivia cantando e relembrando canções antigas sobre as quais, algumas vezes, ela perguntava se a gente conhecia ou mesmo se sabíamos o nome do artista que gravou. Muitas dessas músicas ela copiava a letra em um pequeno caderno, e fazia isso desde a adolescência.

Meu pai, por sua vez, era um tanto desafinado, mas também tinha os seus cantores preferidos e, para nossa sorte, não vivia cantando pela casa. Ao contrário, fazia questão de silêncio e ficava apontando os trechos da música que ele mais gostava, pedindo pra gente prestar atenção na voz do intérprete, no seu jeito de cantar e na melodia, coisas que o fascinava.

Embora gostasse de muitos artistas brasileiros, o que ele mais admirava era o Johnny Mathis, cantor estadunidense que criou uma pronúncia rebuscada a partir de uma inflexão diferente na voz, que fazia com que as palavras soassem sempre brilhantes dentro da canção. Quando tocava uma música dele o tempo parava para o meu pai. O volume do rádio era aumentado e a veneração era algo solene.

Me lembro até hoje claramente do fascínio do meu pai pelo Johnny Mathis. Não só porque, durante a vida toda, ele sempre prestou suas homenagens ao ídolo, sempre que pôde, mas pelo fato de que, com uns nove anos, quando eu pedi uma vitrola de Natal, ela veio embrulhada junto com um único disco: o LP do Johnny Mathis. O presente era pra mim, mas o gosto musical era um empurrãozinho dele, claro.

Aquele disco tocou tanto na minha vitrola que eu acabei gostando do Johnny. Alguns muitos anos depois eu meio que fui retribuir o presente e dei pro meu pai um tocador de mp3 com umas 50 músicas do seu ídolo. Ele custou a acreditar que ali, naquele espaço do pequeno aparelho, cabia tanta música, de tantos discos, e afinal bastava apertar um único botão pra ouvir cada uma. Uma beleza.

Mas foi quando eu me tornei pai que a minha ficha caiu. Como pai eu pude revisitar o esforço dos meus próprios pais em querer apresentar os seus ídolos, tanto pra mim quanto pros meus irmãos. Era como nos ensinar a apreciar o que vale a pena ser apreciado. Ponto. E ali valia tudo, desde cantar junto, e apontar os meandros da canção, como sublinhar os versos e as palavras exatas escolhidas pelo poeta.

Nesse sentido, confesso que sou um pai ainda mais chato, porquanto não me restrinjo somente à música nesse aspecto. Primeiro, reconheço que dei muita sorte por meus filhos gostarem de tocar violão e por cada um ter buscado o seu jeito aqui e ali, enquanto eu ajudava no que podia ou sabia. Mas esse foi um bom ensejo pra eu poder indicar cantores e compositores aos montes para eles, desde os mais populares até os quase desconhecidos, pois que a qualidade nem sempre está atrelada à quantidade, via de regra.

O problema é que a coisa não parou por aí e, invariavelmente, insistentemente eu diria, de um tempo pra cá, tenho vivido impulsos incontidos de indicar ao meu filho Deco, além de músicas e músicos, escritores, diretores e autores, em seus respectivos livros e filmes, apontando diversos caminhos possíveis que, no meu tempo, eram trilhados somente pelo caseiro Johnny Mathis.

Talvez eu queira, como meu pai também quis, que os meus heróis sejam os heróis do meu filho. Deve ser algo normal, na própria configuração genética mitocondrial que os telômeros um dia cuidarão de nos explicar cientificamente. Mas acho que, no fundo, é o desejo de compartilhar com a melhor parte de nós – os filhos – o que de melhor nos toca a sensibilidade, a vida enfim.

Alguns anos atrás, indo passar as festas no Rio, o Deco foi me buscar no aeroporto. No caminho até o estacionamento ele pegou a minha mochila e disse pra eu entrar no carro enquanto ele ia deixar as bagagens na mala. Ele abriu o carro, eu entrei e ele tocou no painel, que se acendeu todo e, logo em seguida, começou a tocar James Taylor. Lentamente ele voltou, entrou no carro, pôs a chave na ignição e ficou uns instantes ouvindo a música junto comigo.

– James Taylor é o meu Johnny Mathis – eu disse baixinho, ou imaginei ter dito.

Afinal, o meu herói não precisa, necessariamente, ser o herói do meu filho.

Basta que ele seja reconhecido como tal.

E está tudo certo!



Evie, por Johnny Mathis

https://www.youtube.com/watch?v=BWPZXQqf-g4