terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Herói

 

Lá em casa sempre teve muita música. Minha mãe vivia cantando e relembrando canções antigas sobre as quais, algumas vezes, ela perguntava se a gente conhecia ou mesmo se sabíamos o nome do artista que gravou. Muitas dessas músicas ela copiava a letra em um pequeno caderno, e fazia isso desde a adolescência.

Meu pai, por sua vez, era um tanto desafinado, mas também tinha os seus cantores preferidos e, para nossa sorte, não vivia cantando pela casa. Ao contrário, fazia questão de silêncio e ficava apontando os trechos da música que ele mais gostava, pedindo pra gente prestar atenção na voz do intérprete, no seu jeito de cantar e na melodia, coisas que o fascinava.

Embora gostasse de muitos artistas brasileiros, o que ele mais admirava era o Johnny Mathis, cantor estadunidense que criou uma pronúncia rebuscada a partir de uma inflexão diferente na voz, que fazia com que as palavras soassem sempre brilhantes dentro da canção. Quando tocava uma música dele o tempo parava para o meu pai. O volume do rádio era aumentado e a veneração era algo solene.

Me lembro até hoje claramente do fascínio do meu pai pelo Johnny Mathis. Não só porque, durante a vida toda, ele sempre prestou suas homenagens ao ídolo, sempre que pôde, mas pelo fato de que, com uns nove anos, quando eu pedi uma vitrola de Natal, ela veio embrulhada junto com um único disco: o LP do Johnny Mathis. O presente era pra mim, mas o gosto musical era um empurrãozinho dele, claro.

Aquele disco tocou tanto na minha vitrola que eu acabei gostando do Johnny. Alguns muitos anos depois eu meio que fui retribuir o presente e dei pro meu pai um tocador de mp3 com umas 50 músicas do seu ídolo. Ele custou a acreditar que ali, naquele espaço do pequeno aparelho, cabia tanta música, de tantos discos, e afinal bastava apertar um único botão pra ouvir cada uma. Uma beleza.

Mas foi quando eu me tornei pai que a minha ficha caiu. Como pai eu pude revisitar o esforço dos meus próprios pais em querer apresentar os seus ídolos, tanto pra mim quanto pros meus irmãos. Era como nos ensinar a apreciar o que vale a pena ser apreciado. Ponto. E ali valia tudo, desde cantar junto, e apontar os meandros da canção, como sublinhar os versos e as palavras exatas escolhidas pelo poeta.

Nesse sentido, confesso que sou um pai ainda mais chato, porquanto não me restrinjo somente à música nesse aspecto. Primeiro, reconheço que dei muita sorte por meus filhos gostarem de tocar violão e por cada um ter buscado o seu jeito aqui e ali, enquanto eu ajudava no que podia ou sabia. Mas esse foi um bom ensejo pra eu poder indicar cantores e compositores aos montes para eles, desde os mais populares até os quase desconhecidos, pois que a qualidade nem sempre está atrelada à quantidade, via de regra.

O problema é que a coisa não parou por aí e, invariavelmente, insistentemente eu diria, de um tempo pra cá, tenho vivido impulsos incontidos de indicar ao meu filho Deco, além de músicas e músicos, escritores, diretores e autores, em seus respectivos livros e filmes, apontando diversos caminhos possíveis que, no meu tempo, eram trilhados somente pelo caseiro Johnny Mathis.

Talvez eu queira, como meu pai também quis, que os meus heróis sejam os heróis do meu filho. Deve ser algo normal, na própria configuração genética mitocondrial que os telômeros um dia cuidarão de nos explicar cientificamente. Mas acho que, no fundo, é o desejo de compartilhar com a melhor parte de nós – os filhos – o que de melhor nos toca a sensibilidade, a vida enfim.

Alguns anos atrás, indo passar as festas no Rio, o Deco foi me buscar no aeroporto. No caminho até o estacionamento ele pegou a minha mochila e disse pra eu entrar no carro enquanto ele ia deixar as bagagens na mala. Ele abriu o carro, eu entrei e ele tocou no painel, que se acendeu todo e, logo em seguida, começou a tocar James Taylor. Lentamente ele voltou, entrou no carro, pôs a chave na ignição e ficou uns instantes ouvindo a música junto comigo.

– James Taylor é o meu Johnny Mathis – eu disse baixinho, ou imaginei ter dito.

Afinal, o meu herói não precisa, necessariamente, ser o herói do meu filho.

Basta que ele seja reconhecido como tal.

E está tudo certo!



Evie, por Johnny Mathis

https://www.youtube.com/watch?v=BWPZXQqf-g4


2 comentários:

  1. Esse aqui é o toque do meu celular quando a Rute me liga:

    https://www.youtube.com/watch?v=hhgrFF7GKI8

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  2. E o fluxo nessa estrada às vezes vem na direção oposta...
    Recentemente meu filho me apresentou a Billie Eilish e suas letras tão expressivas!

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