quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O General e a Bicicleta


Quando eu morava no bairro de Coqueiros, em Florianópolis, o meu condomínio tinha um bicicletário todo bem organizado, com os suportes para prender as bikes e até câmera de vigilância, esta milimetricamente instalada de modo a cobrir todo o perímetro e não deixar nenhum ponto cego.

Mesmo assim, numa certa manhã, a roda da frente da minha bicicleta desapareceu. A bike estava inteira, não havia qualquer outro dano, nem ao quadro e nem ao cadeado, que pareciam estar perfeitos, sem quaisquer sinais de avaria.

Minhas esperanças de achar o culpado, provavelmente um ilustre vizinho, foram se esvaindo pouco a pouco depois da informação do síndico de que a tal câmera de vigilância estava quebrada. Ele combinou comigo que ia perguntar ao porteiro da noite e qualquer coisa me avisaria.

O zelador então veio me consolar:

– Eu trabalho aqui há muitos anos e nunca vi coisa assim nesse condomínio. O que é isso, gente? Roubar uma roda de bicicleta? Do vizinho? É o fim do mundo.

Depois ele pensou, pensou, tirou o chapéu e fez um ruído de desaprovação com a boca.

– Olha, eu vou investigar pro senhor. Tem uma rapaziada aqui dentro que eu já estou de olho. Faz tempo que estou com um deles bem aqui na mira. Então, vou ver o que eu consigo e te falo depois.

Eu disse um obrigado automático, sem ligar muito pro termo “investigar” dele.

Naquela mesma semana o zelador já me veio com uma informação.

– Aquele rapaz que eu estava desconfiado, que eu achava que podia ter surrupiado a sua roda? Pois não foi ele não. Eu mesmo falei com o sujeito e o cara disse que não foi ele.

– Como assim? Você perguntou pra ele?

– Isso mesmo. Perguntei: Foi você que roubou a roda da bicicleta do rapaz do 402?

– E aí?

– Aí ele disse que não. Não fui eu que roubei, não, ele disse.– Ah, então você perguntou se era ele o ladrão da roda da bike. Foi isso?

– Exatamente. E ele disse que não foi ele.

Eu não sabia se ria ou se chorava. Se corria ou se ficava. Na verdade, fiquei olhando pra cara do zelador um bom tempo, achando que a qualquer momento ele ia dizer que era uma pegadinha e ia começar a rir de mim. Mas isso não aconteceu. Era sério. Pra ele, pelo menos.

Isso já tem uns bons 10 anos e eu já nem me lembrava direito. Acontece que hoje, inadvertidamente, tudo voltou à minha memória quando eu abri o site de um grande jornal, um ícone do que há de melhor na imprensa nacional, e lá estava escrita a seguinte manchete: General nega ao STF que ABIN produziu relatórios para ajudar o filho do presidente.

Imediatamente imaginei o general explicando que, por sua própria e fulgurante iniciativa, teria batido na porta da ABIN e perguntado diretamente ao próprio chefe da agência sobre os tais relatórios auxiliares. Ao que o chefe, ele mesmo, em pessoa, teria afirmado categoricamente que não fora produzido qualquer documento para auxiliar os advogados daquele bom filho. A matéria se encerrava com a ministra do STF anunciando que usar um órgão do governo federal com finalidade particular é crime.

Naquele exato momento eu concluí que não há qualquer diferença, pelo menos no que se refere a intelecto e discernimento, entre os zeladores e os generais, com todo o respeito aos zeladores.

Pois veja, se o zelador do meu prédio, que investigou aquele roubo da roda da minha bicicleta, estivesse agora investigando essa ocorrência do auxílio-relatório, penso que já estaria tudo devidamente resolvido. Ora, ora, muito simples: se o general do GSI perguntou ao chefe da ABIN e à PGR se eles cometeram um crime e eles disseram que não, poxa, quem vai duvidar? É um caso a ser encerrado, sumariamente.

No despacho, teríamos arquive-se.

Ou melhor queime-se. O jornal, a denúncia, a apuração, com o STF, com tudo.

Senão, vai que alguém descobre que a bomba explodiu dentro do carro, bem no colo do sargento...



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