quarta-feira, 28 de abril de 2021

O Radinho

 

A rotina do domingo era bem simples lá em casa. Todos nós convivíamos com a mesma certeza: haja o que houver, depois do almoço meu pai vai tirar um cochilo.

No início, eu e meus irmãos não acreditávamos que ele dormia de verdade, isso porque ele botava o radinho de pilhas debaixo do travesseiro e o som era tão alto que a gente ouvia de fora do quarto.

Ao mesmo tempo em que sintonizava o jogo do Flamengo ele roncava, também alto, e a gente não entendia direito se ele ouvia o jogo ou sonhava com ele, durante a tarde.

Misturados os sons que saíam do quarto, entre roncos e o som do rádio, eu gostava de ouvir as vinhetas dos locutores e dos comentaristas, os famosos Waldir Amaral e Jorge Curi, que eram acompanhados pelo ex-árbitro Mário Vianna, com dois enes, bem pronunciados logo na sua apresentação. Os repórteres, quase sempre, eram Edson Mauro e Loureiro Neto, cada um com a sua vinheta.

Além disso, tinha os vários sinais sonoros, apitos e outros efeitos, que indicavam o tempo decorrido da partida e os placares dos outros jogos da rodada, além dos anúncios dos patrocinadores, que eram todos grandes apelos, cada um com um som mais criativo e em alto volume. Tudo muito alto.

Com todo aquele barulho debaixo do travesseiro a gente, em casa, já não tinha qualquer certeza se aquele cochilo era real ou não. Era uma dúvida que a gente tinha, mas não falava.

É claro que, quando saía um gol, a gente supunha que, ao menos naquele momento, meu pai acordava, minimamente pra saber de quem tinha sido o tento. Mas logo voltávamos à dúvida de sempre pela rapidez com que eram retomados os roncos, como se nada houvesse acontecido. Nessa hora minha mãe sempre tentava mostrar pra gente que ele estava, sim, ouvindo o rádio, do jeito dele, sublinhando que ele era meio surdo – o que a gente já sabia – e por isso o volume alto. Mas que ele estava acordado, de alguma forma, e sabia tudo o que estava acontecendo no jogo.

Realmente, para nossa incredulidade, acabava a partida, ele se levantava, ia ao banheiro e depois voltava comentando os lances do jogo dando todos os detalhes. Quando a gente perguntava alguma coisa ele respondia como se tivesse assistido tudo na televisão. E a gente ficava rindo, um olhando pro outro, ouvindo os comentários dele, sempre tendenciosos pro lado do Flamengo, naturalmente.

Lembro que uma vez eu fiquei pensando um tempão se entrava ou não no quarto pra pegar uma caixa enquanto ele, entre aspas, dormia e ouvia o jogo. Era uma caixa grande, de jogo de tabuleiro, que ficava no armário do quarto dos meus pais. Eu tinha uns dez anos e o dilema era: com aquele som alto do rádio, é claro que ele jamais vai me ouvir fazer qualquer barulho. Por outro lado, eu sabia que no meio do jogo era normal ele soltar uma frase qualquer, indignado pela marcação de uma falta ou um erro dos bandeirinhas, em algum impedimento do Flamengo.

Pé ante pé, por via das dúvidas, eu entrei no quarto e me preparei com cuidado pra abrir a porta do armário. De repente, um susto enorme veio junto com um palavrão no meio do nada. Eu estaquei de pronto e me virei pra pedir desculpa, mas meu pai continuava a dormir sereno e em seguida, pra meu espanto, ainda falou no meio do sono, algo do tipo:

– Mas que saco. Sempre tem um pênalti pro Vasco. Todo jogo é isso. Filhos...da...

Com o sangue ainda a correr desvairado pelas veias, eu peguei o jogo e saí do quarto num pulo só. Lá fora minha mãe, com um sorriso maroto, me perguntou o que tinha acontecido para que meu pai falasse alto. Eu nem sabia direito do que se tratava, mas, de qualquer modo, só repeti as palavras que ouvi. Quando acabei, ela novamente confirmou que ele escutava o jogo à sua maneira, mesmo dormindo, e que aquela era a prova de que ela tinha razão. Dizia isso rindo da gente, claro.

Na minha ideia de menino eu achava tudo aquilo meio divino. Como um ritual sagrado. Que, se aquela rotina não fosse preservada, algo de ruim iria acontecer com o meu pai. Então, pra mim, aquele jogo era sagrado, os locutores do rádio eram sagrados, assim como meu pai ir dormir depois do almoço ouvindo a transmissão também era, e o fato de a gente não o incomodar durante o sono era a síntese da preservação de tudo aquilo, para que nada saísse errado na nossa vida.

Ah, sim, e a pessoa que cuidava pra que aquele ritual acontecesse da mesma maneira, todos os domingos, que vigiava e zelava pelo sono, pela vida e pelos nossos dias era a minha mãe.

A guardiã iluminada.

A protetora do sagrado.



sexta-feira, 16 de abril de 2021

Gonzalo, o Cubano


Com a obrigação, por força de ofício, de fazer o clipping diário dos jornais, naquela manhã eu fui direto na página da programação cultural. Assim que encontrei a foto dele, confirmei o que já tinha ouvido falar há um tempão: Gonzalo Rubalcaba vem fazer show em São Paulo.

Eu já tinha visto o pianista pela tevê, tocando em festivais no Rio, como o Free Jazz e o Heyneken Concerts, e logo fiquei vidrado na música dele e na sua maneira de tocar, me tornando fã de imediato, daqueles que procuram os Cds nas lojas e terminam por ficar arrasados quando descobrem que o vendedor não tem a menor ideia de quem se trata.

Era final do ano 2000, ou meio, não lembro bem. Só sei que ao chegar na parte do serviço do show, onde tinha o preço do ingresso, minhas esperanças de assistir o Rubalcaba em Sampa foram por demais reduzidas. O show era caro, num lugar longe e num horário impossível de se ir de ônibus, mesmo que eu quisesse muito. Essas coisas são típicas das grandes cidades brasileiras, que cuidam de impedir, de todos os modos, que o cidadão comum tenha acesso a programações culturais de qualidade.

Naquela mesma noite, na casa de uns amigos, o chefe de um deles, um advogado estadunidense, estava comentando que sua filha, que estudava música nos EUA, tinha pedido pra comprar ingressos para um certo show, mas ligara alguns dias depois dizendo que não ia poder vir ao Brasil, justamente quando os tickets já estavam comprados.

O marido e a mulher estavam se lamentando por ter de devolver as entradas ou tentar vender, mas aquilo definitivamente, não era algo comum para eles. O certo, fatalmente, seria eles irem ao show, mesmo sem muita vontade, ou até deixar o bilhete expirar e, paciência, a filha não pode vir.

– Mas, afinal, de quem é esse show? Que astro da música é esse que a sua filha ligou dos Estados Unidos e pediu pra comprar os ingressos? – perguntou alguém na roda de conversa.

A mãe então disse que ia buscá-los pra ver o nome do sujeito, pois já não se lembrava. Enquanto isso o pai balbuciava algo, tentando ajudar:

– É um tal de Gonzalo, um cubano.

– Gonzalo Rubalcaba, pianista cubano – saiu a frase da minha boca, sem conseguir se conter.

Nisso vem entrando a mãe com o ingresso na mão.

– Isso mesmo, Gonzalo Rubalcaba, o cubano. Você conhece ele?

Aquele termo, cubano, soou meio atravessado pra mim. Não sei se pelo nome incomum do artista em si, se pela nacionalidade dele, ou se pela fatídica ironia de sua filha, estadunidense, ser fã de um artista originário de uma nação comunista.

Os comunistas por sua vez, todos eles, os de antes de mim e os de depois de mim, provavelmente devem ter dado muita risada de toda aquela situação. Até porque, afora os EUA, todo o resto do planeta sabe que as melhores escolas de piano estão em Cuba e na Rússia, coincidentemente, dois estados comunistas por origem.

Eu contei o pouco que sabia sobre o pianista, o seu estilo, dos shows que tinha visto, das críticas que tinha lido e com quem ele já tinha tocado, mundo afora, o que causou grande surpresa em todos. Depois que eu terminei a esposa do advogado disse:

– You know. Então você vai comigo assistir o tal cubano. Pronto. Meu marido não estava mesmo muito a fim de ir, então vamos nós dois. Não vou devolver ingresso nenhum – disse com um sotaque arrastado.

Eu mal podia me conter de alegria. Isso, além de passar por um enorme susto, nos dias seguintes. É que a filha ligou dizendo que mudou de planos, que viria pro Brasil e que a viagem se daria a tempo de ver o show do Gonzalo. Eu soube disso pela mãe dela e, no momento em que eu ia dizer que compreendia o fato de que, nesse caso, não haveria bilhete pra mim, ela contou que não era bem assim, pois eles tinham três entradas, para os pais e a filha, sendo que a minha estava garantida na vaga do pai.

Gente estranha aquela. Nunca soube se rolou um veto ao pai, por desconhecer o cubano, ou o que aconteceu de verdade. Só sei que eu estava lá, todo feliz, assistindo o meu ídolo, que veio se juntar à galeria que já tinha Pablo Milanés, Chucho Valdés e Compay Segundo, do famoso Buena Vista.

Fã incondicional da música brasileira, Rubalcaba tocou Tom Jobim como se fizesse uma prece. Depois chamou ao palco Ivan Lins e João Bosco, passeando pelas canções dos dois com seus acordes perfeitos e harmoniosos. Ouvir os temas recheados de improvisos, naquela inigualável levada de jazz cubano é sempre uma experiência incrível. Quando a música é uma boa e velha conhecida MPB então, o prazer é muito maior, imensurável.

Eu conheço uma pianista e também compositora, em Floripa, que foi estudar piano em Havana. Na época de sua decisão de viajar, uma parte dos familiares deu todo o apoio e concordou que aquela era uma tremenda de uma escolha de carreira. Uma das suas tias, porém, a um certo momento de indignação disse à sobrinha:

– Minha filha! Estudar em Cuba? Um país comunista! Lá não tem nada de bom. Não tem nem internet direito!

A sobrinha, decidida, deu um sorriso de lado e lascou:

– Tia, se eu quisesse internet eu ia pra Miami.



Águas de Março – Tom Jobim. Por Gonzalo Rubalcaba e João Bosco.

https://www.youtube.com/watch?v=S-mxmXFNEa0