sexta-feira, 16 de abril de 2021

Gonzalo, o Cubano


Com a obrigação, por força de ofício, de fazer o clipping diário dos jornais, naquela manhã eu fui direto na página da programação cultural. Assim que encontrei a foto dele, confirmei o que já tinha ouvido falar há um tempão: Gonzalo Rubalcaba vem fazer show em São Paulo.

Eu já tinha visto o pianista pela tevê, tocando em festivais no Rio, como o Free Jazz e o Heyneken Concerts, e logo fiquei vidrado na música dele e na sua maneira de tocar, me tornando fã de imediato, daqueles que procuram os Cds nas lojas e terminam por ficar arrasados quando descobrem que o vendedor não tem a menor ideia de quem se trata.

Era final do ano 2000, ou meio, não lembro bem. Só sei que ao chegar na parte do serviço do show, onde tinha o preço do ingresso, minhas esperanças de assistir o Rubalcaba em Sampa foram por demais reduzidas. O show era caro, num lugar longe e num horário impossível de se ir de ônibus, mesmo que eu quisesse muito. Essas coisas são típicas das grandes cidades brasileiras, que cuidam de impedir, de todos os modos, que o cidadão comum tenha acesso a programações culturais de qualidade.

Naquela mesma noite, na casa de uns amigos, o chefe de um deles, um advogado estadunidense, estava comentando que sua filha, que estudava música nos EUA, tinha pedido pra comprar ingressos para um certo show, mas ligara alguns dias depois dizendo que não ia poder vir ao Brasil, justamente quando os tickets já estavam comprados.

O marido e a mulher estavam se lamentando por ter de devolver as entradas ou tentar vender, mas aquilo definitivamente, não era algo comum para eles. O certo, fatalmente, seria eles irem ao show, mesmo sem muita vontade, ou até deixar o bilhete expirar e, paciência, a filha não pode vir.

– Mas, afinal, de quem é esse show? Que astro da música é esse que a sua filha ligou dos Estados Unidos e pediu pra comprar os ingressos? – perguntou alguém na roda de conversa.

A mãe então disse que ia buscá-los pra ver o nome do sujeito, pois já não se lembrava. Enquanto isso o pai balbuciava algo, tentando ajudar:

– É um tal de Gonzalo, um cubano.

– Gonzalo Rubalcaba, pianista cubano – saiu a frase da minha boca, sem conseguir se conter.

Nisso vem entrando a mãe com o ingresso na mão.

– Isso mesmo, Gonzalo Rubalcaba, o cubano. Você conhece ele?

Aquele termo, cubano, soou meio atravessado pra mim. Não sei se pelo nome incomum do artista em si, se pela nacionalidade dele, ou se pela fatídica ironia de sua filha, estadunidense, ser fã de um artista originário de uma nação comunista.

Os comunistas por sua vez, todos eles, os de antes de mim e os de depois de mim, provavelmente devem ter dado muita risada de toda aquela situação. Até porque, afora os EUA, todo o resto do planeta sabe que as melhores escolas de piano estão em Cuba e na Rússia, coincidentemente, dois estados comunistas por origem.

Eu contei o pouco que sabia sobre o pianista, o seu estilo, dos shows que tinha visto, das críticas que tinha lido e com quem ele já tinha tocado, mundo afora, o que causou grande surpresa em todos. Depois que eu terminei a esposa do advogado disse:

– You know. Então você vai comigo assistir o tal cubano. Pronto. Meu marido não estava mesmo muito a fim de ir, então vamos nós dois. Não vou devolver ingresso nenhum – disse com um sotaque arrastado.

Eu mal podia me conter de alegria. Isso, além de passar por um enorme susto, nos dias seguintes. É que a filha ligou dizendo que mudou de planos, que viria pro Brasil e que a viagem se daria a tempo de ver o show do Gonzalo. Eu soube disso pela mãe dela e, no momento em que eu ia dizer que compreendia o fato de que, nesse caso, não haveria bilhete pra mim, ela contou que não era bem assim, pois eles tinham três entradas, para os pais e a filha, sendo que a minha estava garantida na vaga do pai.

Gente estranha aquela. Nunca soube se rolou um veto ao pai, por desconhecer o cubano, ou o que aconteceu de verdade. Só sei que eu estava lá, todo feliz, assistindo o meu ídolo, que veio se juntar à galeria que já tinha Pablo Milanés, Chucho Valdés e Compay Segundo, do famoso Buena Vista.

Fã incondicional da música brasileira, Rubalcaba tocou Tom Jobim como se fizesse uma prece. Depois chamou ao palco Ivan Lins e João Bosco, passeando pelas canções dos dois com seus acordes perfeitos e harmoniosos. Ouvir os temas recheados de improvisos, naquela inigualável levada de jazz cubano é sempre uma experiência incrível. Quando a música é uma boa e velha conhecida MPB então, o prazer é muito maior, imensurável.

Eu conheço uma pianista e também compositora, em Floripa, que foi estudar piano em Havana. Na época de sua decisão de viajar, uma parte dos familiares deu todo o apoio e concordou que aquela era uma tremenda de uma escolha de carreira. Uma das suas tias, porém, a um certo momento de indignação disse à sobrinha:

– Minha filha! Estudar em Cuba? Um país comunista! Lá não tem nada de bom. Não tem nem internet direito!

A sobrinha, decidida, deu um sorriso de lado e lascou:

– Tia, se eu quisesse internet eu ia pra Miami.



Águas de Março – Tom Jobim. Por Gonzalo Rubalcaba e João Bosco.

https://www.youtube.com/watch?v=S-mxmXFNEa0


2 comentários:

  1. Obrigada Anderson por me apresentar o Gonzalo, e obrigada pelo texto que me emocionou, via a a Arte e a Cultura. Um abraço.

    ResponderExcluir
  2. EU sei o que aconteceu de verdade!
    Você se lembra onde estava o pai naquela noite do show?
    risos...

    ResponderExcluir