A rotina do domingo era bem simples lá em casa. Todos nós convivíamos com a mesma certeza: haja o que houver, depois do almoço meu pai vai tirar um cochilo.
No início, eu e meus irmãos não acreditávamos que ele dormia de verdade, isso porque ele botava o radinho de pilhas debaixo do travesseiro e o som era tão alto que a gente ouvia de fora do quarto.
Ao mesmo tempo em que sintonizava o jogo do Flamengo ele roncava, também alto, e a gente não entendia direito se ele ouvia o jogo ou sonhava com ele, durante a tarde.
Misturados os sons que saíam do quarto, entre roncos e o som do rádio, eu gostava de ouvir as vinhetas dos locutores e dos comentaristas, os famosos Waldir Amaral e Jorge Curi, que eram acompanhados pelo ex-árbitro Mário Vianna, com dois enes, bem pronunciados logo na sua apresentação. Os repórteres, quase sempre, eram Edson Mauro e Loureiro Neto, cada um com a sua vinheta.
Além disso, tinha os vários sinais sonoros, apitos e outros efeitos, que indicavam o tempo decorrido da partida e os placares dos outros jogos da rodada, além dos anúncios dos patrocinadores, que eram todos grandes apelos, cada um com um som mais criativo e em alto volume. Tudo muito alto.
Com todo aquele barulho debaixo do travesseiro a gente, em casa, já não tinha qualquer certeza se aquele cochilo era real ou não. Era uma dúvida que a gente tinha, mas não falava.
É claro que, quando saía um gol, a gente supunha que, ao menos naquele momento, meu pai acordava, minimamente pra saber de quem tinha sido o tento. Mas logo voltávamos à dúvida de sempre pela rapidez com que eram retomados os roncos, como se nada houvesse acontecido. Nessa hora minha mãe sempre tentava mostrar pra gente que ele estava, sim, ouvindo o rádio, do jeito dele, sublinhando que ele era meio surdo – o que a gente já sabia – e por isso o volume alto. Mas que ele estava acordado, de alguma forma, e sabia tudo o que estava acontecendo no jogo.
Realmente, para nossa incredulidade, acabava a partida, ele se levantava, ia ao banheiro e depois voltava comentando os lances do jogo dando todos os detalhes. Quando a gente perguntava alguma coisa ele respondia como se tivesse assistido tudo na televisão. E a gente ficava rindo, um olhando pro outro, ouvindo os comentários dele, sempre tendenciosos pro lado do Flamengo, naturalmente.
Lembro que uma vez eu fiquei pensando um tempão se entrava ou não no quarto pra pegar uma caixa enquanto ele, entre aspas, dormia e ouvia o jogo. Era uma caixa grande, de jogo de tabuleiro, que ficava no armário do quarto dos meus pais. Eu tinha uns dez anos e o dilema era: com aquele som alto do rádio, é claro que ele jamais vai me ouvir fazer qualquer barulho. Por outro lado, eu sabia que no meio do jogo era normal ele soltar uma frase qualquer, indignado pela marcação de uma falta ou um erro dos bandeirinhas, em algum impedimento do Flamengo.
Pé ante pé, por via das dúvidas, eu entrei no quarto e me preparei com cuidado pra abrir a porta do armário. De repente, um susto enorme veio junto com um palavrão no meio do nada. Eu estaquei de pronto e me virei pra pedir desculpa, mas meu pai continuava a dormir sereno e em seguida, pra meu espanto, ainda falou no meio do sono, algo do tipo:
– Mas que saco. Sempre tem um pênalti pro Vasco. Todo jogo é isso. Filhos...da...
Com o sangue ainda a correr desvairado pelas veias, eu peguei o jogo e saí do quarto num pulo só. Lá fora minha mãe, com um sorriso maroto, me perguntou o que tinha acontecido para que meu pai falasse alto. Eu nem sabia direito do que se tratava, mas, de qualquer modo, só repeti as palavras que ouvi. Quando acabei, ela novamente confirmou que ele escutava o jogo à sua maneira, mesmo dormindo, e que aquela era a prova de que ela tinha razão. Dizia isso rindo da gente, claro.
Na minha ideia de menino eu achava tudo aquilo meio divino. Como um ritual sagrado. Que, se aquela rotina não fosse preservada, algo de ruim iria acontecer com o meu pai. Então, pra mim, aquele jogo era sagrado, os locutores do rádio eram sagrados, assim como meu pai ir dormir depois do almoço ouvindo a transmissão também era, e o fato de a gente não o incomodar durante o sono era a síntese da preservação de tudo aquilo, para que nada saísse errado na nossa vida.
Ah, sim, e a pessoa que cuidava pra que aquele ritual acontecesse da mesma maneira, todos os domingos, que vigiava e zelava pelo sono, pela vida e pelos nossos dias era a minha mãe.
A guardiã iluminada.
A protetora do sagrado.
Muito bom, somo sempre. Fica a pergunta: e o filho dele, jornalista, contista, tornou-se flamenguista?
ResponderExcluirOlá Cyro. Desde que viu Doval, Liminha e Fio Maravilha - em pessoa e em música -, ele não teve outra escolha. Aí depois veio Rondinelli, Adílio e um tal de Zico...
ExcluirLindo. Sonoro. Uma canção.
ResponderExcluirQue saudade de tocar com vocês todos...
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