quinta-feira, 27 de maio de 2021

O Esperto


Depois de sair do consultório do dentista, onde deixei dois belos sisos, boa parte da minha coragem e uma mainça do meu sangue, me dirigi até a Praça XV para aguardar a minha carona salvadora.

Na esquina havia uma farmácia e bem no cantinho tinha um banco, onde as pessoas esperavam pra receber as suas aplicações injetáveis.

Eu estava meio tonto ainda e perguntei se podia me sentar um pouco, enquanto o meu resgate não chegava. O guarda prontamente me deu passagem, indicando o local dos assentos e eu suspirei aliviado.

Fiquei ali uns minutos e assim que me senti melhor retornei pra frente da farmácia, na beira da calçada, de modo a facilitar a minha rápida entrada no carro, sem prejudicar o trânsito que, àquela hora da noite, era intenso no Centro da cidade.

Tão logo cheguei, notei que dois carros liberavam, quase simultaneamente, suas vagas, bem em frente à farmácia. Ao mesmo tempo, dois outros carros chegavam para ocupá-las. Foi tudo muito rápido, sendo que o primeiro estava um pouco afastado do meio-fio e ligava a seta pra encostar. No mesmo instante, o outro carro forçou a passagem e se meteu na vaga da frente, deixando o primeiro carro em fila dupla e o obrigando a acionar as luzes de alerta.

Um rapaz na calçada, que a meu ver estava com a motorista do carro que piscava, fez sinal e pediu ao outro motorista que aguardasse um pouco pois ele não iria estacionar e logo iria sair, liberando as duas vagas. Sem responder nada o homem continuou forçando a passagem e entrou de vez com o carro, numa atitude um tanto grosseira, me pareceu.

Em seguida, o homem saiu do carro, bateu e trancou as portas, suspendeu as calças na cintura e quando percebeu que eu assistia toda a cena, disse:

– Viu que espertinho?

– Eu vi que ele pediu um favor ao senhor, dizendo que não ia estacionar.

– Quem?

– O rapaz que estava na calçada e fez os sinais, pedindo pro senhor esperar.

– Ah, eu nem entendi. Mas ele queria a vaga e eu estava na frente. A preferência era minha.

– Pode ser, mas ele continua ali na fila dupla e parece que não vai estacionar mesmo.

Nesse instante o rapaz sai de dentro da farmácia amparando uma senhora, de cabelos brancos, calçando uma bota ortopédica e trazendo uma muleta na mão. Passaram bem pertinho, ao nosso lado, enquanto a motorista saía do carro e vinha abrir a porta pra ajudar a senhora a entrar.

– Viu? Ele estava só lhe pedindo um favor. O senhor percebeu agora?

– Não venha me dar lição de moral não, a vaga era minha, eu estacionei e pronto.

– Eu não tenho mais nada a falar com o senhor.

Visivelmente desconcertado, o homem parecia querer brigar com ele mesmo. Pior, queria brigar comigo e talvez com o cara da farmácia e com o pipoqueiro da praça também, no momento em que se deparou, inapelavelmente, com a sua própria atitude abjeta. Murmurando impropérios ele saiu andando pela rua lateral, sempre olhando pra trás, como que me encarando ou querendo achar ali um sinal, um motivo cabal para a deflagração de uma briga de rua, uma discussão ruidosa ou coisa que o valha.

De olho na minha carona, que chegaria em pouco tempo, eu acabei por assistir a velhinha entrando no veículo e pude perceber o carinho e os cuidados com que os dois jovens a transportavam. O carro sumiu na esquina, tomando o rumo da ponte, e o meu sentimento era de pedir desculpas aos seus três ocupantes pelo comportamento do outro motorista.

Quis pedir desculpas ao mundo, tamanha a minha frustração e o meu desalento por ter presenciado aquela cena deplorável, por ter trocado aquelas frases com o homem, por ser impossível pra mim aceitar que alguém possa optar por viver desse modo, em guarda, armas em punho, em vigília contra os que ele chama de espertos, por todo o sempre.

Pensei que ele devia ter esposa, filhos, avós, pais e tios e que, de alguma maneira, ele não só havia recebido educação compatível com as atitudes de há pouco, como seria essa a orientação que passaria à sua descendência, com uma boa dose de certeza. Por isso eu queria pedir desculpas por ele.

A curta cena me levou ainda a certas questões. A quem o homem pode pedir algum favor, senão ao próprio homem? Seria razoável pedir ajuda a uma pedra, a um arbusto ou a uma minhoca? Como pedir ajuda a alguém que abdica da sua condição humana? A alguém que escolhe ser um não-humano, que renuncia à racionalidade, que rebaixa a sua própria capacidade de compreensão e de entendimento?

A continuidade da vida civilizada depende de cada gesto, de cada pedido de favor, de cada ajuda retribuída, cada concessão de parte a parte e de toda a compreensão possível nesse mundo. Temos, todos nós, um compromisso com o nosso intelecto, com a nossa inteligência, que vem sendo formada e aperfeiçoada a cada existência, a cada geração. Isso se chama evoluir!

Sei que muitos foram criados com foco em vencer, vencer o outro, vencer a todos, vencer na vida. E muitos continuam a criar filhos assim, para serem espertos, mais espertos do que os outros espertos, tristemente espertos, deseducadamente espertos, desumana e egoisticamente espertos.

Mas quando, em certo momento, eu rememorei a frase que havia dito ao homem – “Não tenho mais nada a falar com o senhor” –, um baque de arrependimento ecoou em mim.

Eu não sou ninguém. Mas eu tinha tanto a falar pra ele...



quarta-feira, 12 de maio de 2021

O Namorado da Viúva


Acho que foi por volta do ano 2005, ou 6. Era aniversário da cidade e, entre as várias comemorações, naquele ano anunciaram que no parque, pertinho de casa, ia ter um show com o Jorge Ben, o mesmo que, alguns anos antes, tinha passado a ser Jorge Ben Jor.

Eu custei a acreditar no tal evento. Primeiro porque era alguém conhecido no Brasil todo e não um artista local, como sempre acontecia. Depois porque era um músico, cantor e compositor com reconhecida história no cenário da música popular brasileira de todos os tempos. Um ícone, por assim dizer. E eu estranhei justamente que alguém daquele nível havia sido contatado pela prefeitura pra fazer um show na cidade.

Esperei ainda uns dias pra ver se confirmavam e, como ninguém desmentiu, eu comecei a avisar pros amigos.

Todos desconfiaram também e me perguntaram insistentes se não era algum sertanejo, daqueles que berram sem berrante, ou mesmo uma dupla feminina com chapéu de cowboy e que iria cantar, beber, cair e levantar, e depois ser presa – as duas – pelo guarda que as flagrou dormindo na praça. Mas não, “é o Jorge Ben Jor mesmo, gente!”, alardeei todo animado.

Nesse mundo de meu Deus, é fato que, olhando de perto, ninguém é normal. Ponto. Essa sentença é bem comum, o que me permite revelar que, em todos os shows para o quais eu me programo estar presente, eu ensaio uma ou duas músicas do cantor, para o caso de eu ser chamado pra tocar com ele no palco. Eu sei, nunca aconteceu isso, nunca ninguém me convidou. Mas, mesmo assim, eu sempre gosto de estar, digamos, preparado para o caso de um “vai que”, e aí trato de tirar a música certinha, memorizando os acordes e fico ali, o show todo, só na expectativa daquela possibilidade.

Jamais eu fui a um show de música popular sem antes ter, prontinha, uma canção do artista convidado pra tocar com ele no palco. Imagino que ele iria perguntar no meio do show:

– Então gente, tem alguém aí da plateia que quer subir aqui pra tocar uma música comigo?

E eu levantaria o braço, rápido como um relâmpago, e subiria as escadas da glória, torcendo pra que meu irmão, ou meu filho, visse aquela cena, de algum jeito, algum dia.

Naquela época eu conhecia um engenheiro, Márcio, muito gente boa, amigão mesmo, que adorava a música O Namorado da Viúva. Sempre que aparecia um violão por perto ele me pedia pra tocar a canção. Às vezes era o meu violão, mas, muitas vezes, era o violão dele mesmo que surgia de repente nas reuniões e nos bate-papos.

E eu sempre dizia que aquela era uma das primeiras músicas que aprendi no violão e que, por ser muito antiga, pouca gente conhecia. Eu mencionava este detalhe e depois arrematava, elogiando o seu gosto e sublinhando que ele era um verdadeiro fã do então Jorge Ben, um artista de renome internacional, referência para músicos do naipe de Caetano Veloso e também de Gilberto Gil.

Assim, quando o show começou naquela tarde festiva e ensolarada; quando subiu ao palco o dono do melhor suingue brasileiro, com sua guitarra branca, todo de branco e óculos escuros, foi um delírio geral no parque. Uma gritaria enorme ecoou solene para depois se tornar um coro de Jorge, Jorge, enquanto ele saudava a todos e brindava o aniversário da cidade de Floripa.

Quase todo o repertório era composto de músicas conhecidas, todas dançantes, e todos ali sabiam as letras de cor. Era um grande baile a céu aberto, raro até, a um certo ponto, pois só vinha música de qualidade, uma atrás da outra.

Foi então que eu tomei coragem e fui até a lateral do palco. Fiquei um tempo ali observando e chamei um funcionário da produção do show. Pelo crachá era alguém da equipe do Jorge Ben e diante da minha pergunta ele me garantiu que o artista raramente atendia a pedidos do público e que nem era afeito a seguir a sugestão para tocar alguma música.

Quando eu estava agradecendo, resignado, e me preparando pra voltar ao meu lugar, ouvi o som parar e o cantor falar com a plateia:

– E aí, Floripa, o que vocês querem ouvir que eu ainda não toquei? Vamos lá, é o aniversário de vocês.

Na mesma hora eu fiquei na ponta dos pés e avistei o cara da produção. Ele fez um gesto me chamando de volta e disse que não estava entendo nada e não tinha como explicar aquilo, mas, se eu quisesse pedir alguma música, aquela era a hora.

Na mesma hora eu disse:

– O Namorado da Viúva.

– O quê? Tem essa música?

– Tem sim. É ótima.

– E é do Ben Jor?

– Sim, é dele desde quando ele ainda era só Jorge Ben.

– Se você diz, ok. Vou passar pelo rádio, lá pro palco. Vamos torcer.

– Ah, olha, diz que, se ele não lembrar, eu posso subir e tocar com ele. Valeu?

E fui correndo direto pro meu lugar, só esperando pela reação do músico. Claro que havia a dúvida se ele ia achar boa a minha sugestão, se ia lembrar a letra, como tocar e, principalmente, se ia me chamar mesmo pra subir ao palco. Meu nervosismo já estava incontrolável, querendo que alguma dessas respostas fosse um não, que aí já acabava com tudo e eu não morria de ansiedade.

Ele foi tocando, tocando, atendendo aos pedidos, e de repente anunciou:

– Eu vou tocar agora uma música bem antiga, que eu nem lembro direito, mas que gosto demais dela e agradeço aí pro amigo que pediu. Se chama O Namorado da Viúva.

A emoção foi demais. Eu chorei pela música, pelas palavras dele antes de tocar, pelo meu amigo Márcio e pelas lembranças de quando eu atendia ao seu pedido e a gente cantava junto.

Dizem que a música tem o dom de nos transportar, de nos levar e enlevar.

E toda vez que eu volto àquele dia, que volto ao parque de Floripa, que eu revisito o show do Jorge Ben Jor, ele está lá no palco, empunhando a sua guitarra branca, cantando O Namorado da Viúva, apontando pra mim e sorrindo em agradecimento.

Tudo certinho como aconteceu.

No mesmo lugar.

Exatamente.