Depois de sair do consultório do dentista, onde deixei dois belos sisos, boa parte da minha coragem e uma mainça do meu sangue, me dirigi até a Praça XV para aguardar a minha carona salvadora.
Na esquina havia uma farmácia e bem no cantinho tinha um banco, onde as pessoas esperavam pra receber as suas aplicações injetáveis.
Eu estava meio tonto ainda e perguntei se podia me sentar um pouco, enquanto o meu resgate não chegava. O guarda prontamente me deu passagem, indicando o local dos assentos e eu suspirei aliviado.
Fiquei ali uns minutos e assim que me senti melhor retornei pra frente da farmácia, na beira da calçada, de modo a facilitar a minha rápida entrada no carro, sem prejudicar o trânsito que, àquela hora da noite, era intenso no Centro da cidade.
Tão logo cheguei, notei que dois carros liberavam, quase simultaneamente, suas vagas, bem em frente à farmácia. Ao mesmo tempo, dois outros carros chegavam para ocupá-las. Foi tudo muito rápido, sendo que o primeiro estava um pouco afastado do meio-fio e ligava a seta pra encostar. No mesmo instante, o outro carro forçou a passagem e se meteu na vaga da frente, deixando o primeiro carro em fila dupla e o obrigando a acionar as luzes de alerta.
Um rapaz na calçada, que a meu ver estava com a motorista do carro que piscava, fez sinal e pediu ao outro motorista que aguardasse um pouco pois ele não iria estacionar e logo iria sair, liberando as duas vagas. Sem responder nada o homem continuou forçando a passagem e entrou de vez com o carro, numa atitude um tanto grosseira, me pareceu.
Em seguida, o homem saiu do carro, bateu e trancou as portas, suspendeu as calças na cintura e quando percebeu que eu assistia toda a cena, disse:
– Viu que espertinho?
– Eu vi que ele pediu um favor ao senhor, dizendo que não ia estacionar.
– Quem?
– O rapaz que estava na calçada e fez os sinais, pedindo pro senhor esperar.
– Ah, eu nem entendi. Mas ele queria a vaga e eu estava na frente. A preferência era minha.
– Pode ser, mas ele continua ali na fila dupla e parece que não vai estacionar mesmo.
Nesse instante o rapaz sai de dentro da farmácia amparando uma senhora, de cabelos brancos, calçando uma bota ortopédica e trazendo uma muleta na mão. Passaram bem pertinho, ao nosso lado, enquanto a motorista saía do carro e vinha abrir a porta pra ajudar a senhora a entrar.
– Viu? Ele estava só lhe pedindo um favor. O senhor percebeu agora?
– Não venha me dar lição de moral não, a vaga era minha, eu estacionei e pronto.
– Eu não tenho mais nada a falar com o senhor.
Visivelmente desconcertado, o homem parecia querer brigar com ele mesmo. Pior, queria brigar comigo e talvez com o cara da farmácia e com o pipoqueiro da praça também, no momento em que se deparou, inapelavelmente, com a sua própria atitude abjeta. Murmurando impropérios ele saiu andando pela rua lateral, sempre olhando pra trás, como que me encarando ou querendo achar ali um sinal, um motivo cabal para a deflagração de uma briga de rua, uma discussão ruidosa ou coisa que o valha.
De olho na minha carona, que chegaria em pouco tempo, eu acabei por assistir a velhinha entrando no veículo e pude perceber o carinho e os cuidados com que os dois jovens a transportavam. O carro sumiu na esquina, tomando o rumo da ponte, e o meu sentimento era de pedir desculpas aos seus três ocupantes pelo comportamento do outro motorista.
Quis pedir desculpas ao mundo, tamanha a minha frustração e o meu desalento por ter presenciado aquela cena deplorável, por ter trocado aquelas frases com o homem, por ser impossível pra mim aceitar que alguém possa optar por viver desse modo, em guarda, armas em punho, em vigília contra os que ele chama de espertos, por todo o sempre.
Pensei que ele devia ter esposa, filhos, avós, pais e tios e que, de alguma maneira, ele não só havia recebido educação compatível com as atitudes de há pouco, como seria essa a orientação que passaria à sua descendência, com uma boa dose de certeza. Por isso eu queria pedir desculpas por ele.
A curta cena me levou ainda a certas questões. A quem o homem pode pedir algum favor, senão ao próprio homem? Seria razoável pedir ajuda a uma pedra, a um arbusto ou a uma minhoca? Como pedir ajuda a alguém que abdica da sua condição humana? A alguém que escolhe ser um não-humano, que renuncia à racionalidade, que rebaixa a sua própria capacidade de compreensão e de entendimento?
A continuidade da vida civilizada depende de cada gesto, de cada pedido de favor, de cada ajuda retribuída, cada concessão de parte a parte e de toda a compreensão possível nesse mundo. Temos, todos nós, um compromisso com o nosso intelecto, com a nossa inteligência, que vem sendo formada e aperfeiçoada a cada existência, a cada geração. Isso se chama evoluir!
Sei que muitos foram criados com foco em vencer, vencer o outro, vencer a todos, vencer na vida. E muitos continuam a criar filhos assim, para serem espertos, mais espertos do que os outros espertos, tristemente espertos, deseducadamente espertos, desumana e egoisticamente espertos.
Mas quando, em certo momento, eu rememorei a frase que havia dito ao homem – “Não tenho mais nada a falar com o senhor” –, um baque de arrependimento ecoou em mim.
Eu não sou ninguém. Mas eu tinha tanto a falar pra ele...
Para um esperto, espertinho ou espertalhão o outro é sempre um bobão.
ResponderExcluirMelhor nada falar... Pq, com certeza, ele não iria te ouvir. Ele já tinha te mostrado sofrer de uma cegueira emocional. Que normalmente vem acompanhada de surdez psicológica e de nada adiantaria você falar... Ah, antes que eu me esqueça: cuidem-se bem!!!
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