sábado, 31 de julho de 2021

O Amigo do Alemão

 

Eu entrei com o carro no posto de gasolina e, mesmo antes de pedir pra abastecer, o seu Hélio já foi apontando pra baixo, me dizendo que os pneus estavam fora da calibragem.

Assim que vi o seu gesto me lembrei de que fazia mesmo muito tempo que eu não verificava os pneus e que, provavelmente, como sempre, o frentista tinha razão.

O seu Hélio é um senhor negro, bem alto e de postura atlética e que, provavelmente, já devia estar aposentado, fosse um trabalhador de qualquer outra nacionalidade que não a brasileira. Simpático e espirituoso, mesmo nas ocasiões em que eu passo pelo posto a pé, a caminho do Centro, a gente sempre se cumprimenta e sempre surge, da parte dele, algo inteligente pra arrematar uma anedota ou uma prosa bem-humorada.

Aliás, seu Hélio está sempre cumprimentando alguém, enquanto está trabalhando. Sempre tem um conhecido passando pelo posto, de carro ou a pé, que grita “bom dia” ou “boa tarde” pra ele. Eventualmente a gente só vê os braços na janela dos veículos, se afastando, e ele acenando de volta.

Nesse dia, enquanto eu fui pagar o combustível, notei que um senhor se aproximou do frentista no momento em que ele enchia o pneu do meu carro. De onde eu estava não pude ver nem ouvir direito o encontro, mas percebi que ambos ficaram alegres e o homem atravessou a rua pra entrar no seu veículo.

Quando eu cheguei mais perto, o seu Hélio, ainda rindo, me perguntou:

– Você ouviu o que ele falou? Ouviu do que ele me chamou?

– Não, eu estava lá dentro, no caixa.

– Ele tinha abastecido mais cedo, aqui comigo, e agora passou pra me dar uma gorjeta. Aí disse assim: ô alemão, toma aqui um troco pra você.

Mesmo vendo que o frentista tinha levado na boa aquele diálogo com o cliente, eu fiquei bem contrariado pelo fato de o cara ter tirado sarro, chamando o seu Hélio, um homem negro, de alemão. Contrariado é pouco. Eu estava furioso, pensando que esses brancos racistas jamais vão evoluir ao grau de humanos. Vão passar mil anos e ainda estarão por aqui, desfilando as suas mentes retrógradas e ignorantes.

– Que cara escroto, chamando o outro de alemão, tripudiando do fato de ele ser negro. Que cara babaca! – falei entredentes, cuidando para o frentista não ouvir.

Vendo o meu estado de contrariedade, o seu Hélio veio pra perto de mim e explicou:

– Ele me chama de alemão. Sempre me chama assim. Mas ele é meu amigo. Na primeira vez que isso aconteceu foi logo quando eu falei que sou nascido em Blumenau. Aí, de pronto ele falou que se eu nasci em Blumenau, logo eu sou alemão. Se todos dizem que aquela é terra de alemães, então, como eu nasci lá, eu também sou alemão.

– Bem, até faz algum sentido – respondi, ainda avaliando as suas palavras. E ele continuou:

– Sim, e ele ainda me disse que tem um monte de jogador de futebol negro que é alemão, e que temos de chamar os negros alemães de alemães, desse modo mesmo, pra que todos entendam que o sujeito pode ser, sim, negro e alemão. Qual o problema? No final eu acho até graça disso tudo e da reação das pessoas, porque, desde aquela nossa conversa, ele sempre faz questão de me chamar de alemão. E eu só dou risada.

Eu fiquei pensando uns minutos, refletindo, considerando. Me lembrei de alguns esportistas, como o Asamoah, o Boateng, e até do Dustin Brown, um tenista alemão que é negro e, por fim, concordei, dando também uma boa risada, pra acompanhar a risada do frentista.

– Que cara bacana, chamando o outro de alemão. Se ele nasceu em Blumenau porque não pode ser chamado de alemão? Só porque é negro? Que cara gente boa! Queria dar um abraço nele – falei entre risos, cuidando pro frentista ouvir.

Eu ainda não tive coragem de chamar o seu Hélio de alemão, assim como o amigo dele faz. Fico pensando que nem todo mundo vai ter acesso à explicação que eu tive e que esse meu tratamento pode ser mal interpretado pelas pessoas. Pode ser falta de ousadia da minha parte, ou mesmo covardia. Pode ser até receio de expor o frentista a uma situação incômoda, se por acaso uma pessoa entender errado o termo alemão, como eu mesmo entendi anteriormente.

O fato é que sempre que eu o encontro, me vem à lembrança a figura do seu amigo, este sim um sujeito corajoso que, em essência, acaba por dar a ele a oportunidade de contar a todos a sua origem: que ele é nascido em Blumenau e por isso é alemão. Simples assim.


terça-feira, 20 de julho de 2021

O Barbeiro e o Pintor


Em várias ocasiões nesta vida a gente se depara com uma mãe super protetora. Na minha infância mesmo eu tinha um amigo que, se a mãe o visse brigando na rua, descia do apartamento e vinha tirar satisfações em defesa do filho. Mesmo numa discussão normal, de futebol ou bola de gude, lá estava ela na janela, de olho pra que o filho não corresse perigo.

No início da década de 1980, quando eu comecei a trabalhar, minha chefe era a mais perfeita tradução da mãe super protetora. Em dois dias da semana o filho fazia um curso lá perto do trabalho e o pai, após buscá-lo na aula, passava no trabalho da mãe, a caminho de casa. Era nessas ocasiões que a gente tinha algum contato com o menino, mesmo assim tendo o pai e a mãe sempre ali por perto.

Na sala onde eu trabalhava, a equipe era formada por dois técnicos, dois datilógrafos, um contínuo e um agente administrativo, que era eu. Sempre tinha muito trabalho. Por isso mesmo, qualquer tempinho vago a gente caía de pau em todo mundo, seja o contínuo da outra seção, seja a secretária do departamento ao lado, o cara do elevador, o porteiro, nada passava por nós sem o nosso carimbo de chacota, galhofa ou lá o que fosse aquilo.

Então, quando Celinho, o Marcelo, filho da chefe, ia passar uns poucos momentos lá no escritório, no fim do expediente, a gente tinha dois trabalhos específicos: zoar o moleque e não deixar a mãe perceber.

Vale sublinhar que, cá pra nós, o guri era um poço de melindre. Tudo o incomodava e nada o agradava. Tinha um monte de manias e a mãe sempre fazia a sua vontade, com aquela voz de mimo, quase pegando o moleque no colo, mesmo com os seus 10 anos e um corpinho recheado.

Qualquer coisa que ele pegasse e tivesse uma poeirinha, ele logo esticava os dedos e pedia pra lavar as mãos. Quando o cadarço desamarrava, ele ia até a mãe pra ela amarrar. A mochila, claro, era o pai que carregava e o lanche dele, as frutinhas, alinhadinhas no pratinho, eram todas picadinhas, pra ele só ter o trabalho de fisgar com o garfinho.

Uma vez alguém de nós foi na copa e trouxe água pra ele. Assim que o copo pousou na mesa do garoto a mãe veio correndo com um pano e nos explicou que o Celinho não gostava que o copo dele ficasse molhado por fora. Tudo que ele bebia não podia ter aquelas gotinhas por fora do copo. Mesmo após lavar, a mãe sempre secava o copo do Celinho.

Em uma segunda-feira qualquer a gente soube que o Celinho tinha sofrido um pequeno acidente no fim de semana e a mãe só iria trabalhar na terça. A turma do trabalho passou o dia todo tentando adivinhar o que teria acontecido e tudo que a gente sugeria era algo que vinha seguido de uma risada no final. Não dava pra imaginar que aquele garoto cheio de manias e mimos tivesse sofrido realmente um acidente.

No dia seguinte, a mãe, ainda super preocupada, veio nos contar que eles foram no barbeiro no sábado de manhã e que, mesmo antes de sair de casa, o menino já perguntava se o cara ia cortar a sua orelha. A mãe, espantada respondia que não, que era uma coisa maluca ele falar aquilo, porque barbeiro não corta a orelha de ninguém, que ele era experiente, que cortava o cabelo de muita gente, muitas crianças e tal.

Só que quando chegou no salão, nos disse a mãe, o filho não quis sentar naqueles suportes de crianças, pra que elas fiquem mais altas na cadeira. Tinha um de bichinho, mas ele não quis. Tinha um de carrinho, mas ele não quis. Tinha um cor de rosa, mas ele não quis. Então, depois de muita luta, o pai foi no carro e pegou uma caixa de madeira na mala e trouxe também uma almofada que ficava no banco traseiro.

A cada vez que o barbeiro passava o pente nos lados da cabeça o menino se afastava e botava a mão na orelha, como que se protegendo de alguma coisa. A mãe falava pra ele ficar quieto e o pai dizia que já estava acabando. Esse roteiro durou todo o tempo do corte, na mesma sequência: ele se afastava, a mãe dizia “quieto” e o pai murmurava “calma, tá quase acabando”.

Numa dessas esquivadas do capeta, quer dizer, do menino, o caixote falseou, a almofada meneou e a tesoura foi direto pro lado, dando uma leve picada, um trisco, bem na orelha do pirralho. Na mesma hora ele deu um grito, a mãe deu outro maior ainda, e o barbeiro, assustado, lascou rápido um pano na orelha, de onde já saía uma gotinha de sangue.

O problema é que aquele pano era o mesmo usado nas costas dos clientes e o barbeiro não percebeu que ele estava cheio de cabelo. Quando aqueles cabelos caíram nos ombros e braços do menino aí mesmo que ele gritou mais ainda, cheio de nojo e sem ter pra onde correr, cercado de gente por todos os lados.

Uma das manicures trouxe um copo d’água, toda solícita, mas o copo estava molhado por fora e a intenção de socorro deu toda errada, para espanto dela, que não entendeu nada daquele caos, naturalmente.

No meio daquele furdunço, os outros barbeiros pararam o trabalho também pra acudir mãe, pai e filho, e cada um tentava acalmar os nervos de um jeito diferente. E tanto que o menino falou que o barbeiro ia cortar a orelha dele que, pronto, aconteceu de verdade.

Enfim, a própria mãe terminou de cortar o cabelo do filho, já em casa, e depois eles foram todos pra pizzaria pra esquecer o ocorrido. “Celinho se cura de todos os problemas, quando entra naquela pizzaria”, pontuou a mãe.

Dando uma de investigador, conversando com o marido da chefe, dias depois, eu descobri que o salão afinal ficava perto da minha casa. “Na esquina da Planalto”, me disse o pai. E eu percebi, com alguma surpresa, que eu conhecia não só a loja de queijos, mas também o próprio barbeiro assassino, que ficava bem ao lado.

Devo dizer que o episódio da orelha cortada, na versão do pessoal do Salão do Pedrinho foi a melhor coisa que eu ouvi em muito tempo. Além do próprio barbeiro, outros baianos como ele, que trabalham lá, cuidaram, verdadeiramente, de me presentear com uma narrativa rica e minuciosa, digna dos melhores roteiristas de comédia. Obviamente, eu não poderia me furtar àquele compromisso e, no dia seguinte mesmo, tratei de reproduzir tudinho, à risca, em cada detalhe, para os meus colegas do trabalho.

Aliás, daquele dia em diante, nos intervalos do expediente, cada vez que alguém dizia a senha Van Gogh, a gente já sabia que era a história do barbeiro que vinha à tona novamente, em outras, e ainda mais hilárias versões.