Eu entrei com o carro no posto de gasolina e, mesmo antes de pedir pra abastecer, o seu Hélio já foi apontando pra baixo, me dizendo que os pneus estavam fora da calibragem.
Assim que vi o seu gesto me lembrei de que fazia mesmo muito tempo que eu não verificava os pneus e que, provavelmente, como sempre, o frentista tinha razão.
O seu Hélio é um senhor negro, bem alto e de postura atlética e que, provavelmente, já devia estar aposentado, fosse um trabalhador de qualquer outra nacionalidade que não a brasileira. Simpático e espirituoso, mesmo nas ocasiões em que eu passo pelo posto a pé, a caminho do Centro, a gente sempre se cumprimenta e sempre surge, da parte dele, algo inteligente pra arrematar uma anedota ou uma prosa bem-humorada.
Aliás, seu Hélio está sempre cumprimentando alguém, enquanto está trabalhando. Sempre tem um conhecido passando pelo posto, de carro ou a pé, que grita “bom dia” ou “boa tarde” pra ele. Eventualmente a gente só vê os braços na janela dos veículos, se afastando, e ele acenando de volta.
Nesse dia, enquanto eu fui pagar o combustível, notei que um senhor se aproximou do frentista no momento em que ele enchia o pneu do meu carro. De onde eu estava não pude ver nem ouvir direito o encontro, mas percebi que ambos ficaram alegres e o homem atravessou a rua pra entrar no seu veículo.
Quando eu cheguei mais perto, o seu Hélio, ainda rindo, me perguntou:
– Você ouviu o que ele falou? Ouviu do que ele me chamou?
– Não, eu estava lá dentro, no caixa.
– Ele tinha abastecido mais cedo, aqui comigo, e agora passou pra me dar uma gorjeta. Aí disse assim: ô alemão, toma aqui um troco pra você.
Mesmo vendo que o frentista tinha levado na boa aquele diálogo com o cliente, eu fiquei bem contrariado pelo fato de o cara ter tirado sarro, chamando o seu Hélio, um homem negro, de alemão. Contrariado é pouco. Eu estava furioso, pensando que esses brancos racistas jamais vão evoluir ao grau de humanos. Vão passar mil anos e ainda estarão por aqui, desfilando as suas mentes retrógradas e ignorantes.
– Que cara escroto, chamando o outro de alemão, tripudiando do fato de ele ser negro. Que cara babaca! – falei entredentes, cuidando para o frentista não ouvir.
Vendo o meu estado de contrariedade, o seu Hélio veio pra perto de mim e explicou:
– Ele me chama de alemão. Sempre me chama assim. Mas ele é meu amigo. Na primeira vez que isso aconteceu foi logo quando eu falei que sou nascido em Blumenau. Aí, de pronto ele falou que se eu nasci em Blumenau, logo eu sou alemão. Se todos dizem que aquela é terra de alemães, então, como eu nasci lá, eu também sou alemão.
– Bem, até faz algum sentido – respondi, ainda avaliando as suas palavras. E ele continuou:
– Sim, e ele ainda me disse que tem um monte de jogador de futebol negro que é alemão, e que temos de chamar os negros alemães de alemães, desse modo mesmo, pra que todos entendam que o sujeito pode ser, sim, negro e alemão. Qual o problema? No final eu acho até graça disso tudo e da reação das pessoas, porque, desde aquela nossa conversa, ele sempre faz questão de me chamar de alemão. E eu só dou risada.
Eu fiquei pensando uns minutos, refletindo, considerando. Me lembrei de alguns esportistas, como o Asamoah, o Boateng, e até do Dustin Brown, um tenista alemão que é negro e, por fim, concordei, dando também uma boa risada, pra acompanhar a risada do frentista.
– Que cara bacana, chamando o outro de alemão. Se ele nasceu em Blumenau porque não pode ser chamado de alemão? Só porque é negro? Que cara gente boa! Queria dar um abraço nele – falei entre risos, cuidando pro frentista ouvir.
Eu ainda não tive coragem de chamar o seu Hélio de alemão, assim como o amigo dele faz. Fico pensando que nem todo mundo vai ter acesso à explicação que eu tive e que esse meu tratamento pode ser mal interpretado pelas pessoas. Pode ser falta de ousadia da minha parte, ou mesmo covardia. Pode ser até receio de expor o frentista a uma situação incômoda, se por acaso uma pessoa entender errado o termo alemão, como eu mesmo entendi anteriormente.
O fato é que sempre que eu o encontro, me vem à lembrança a figura do seu amigo, este sim um sujeito corajoso que, em essência, acaba por dar a ele a oportunidade de contar a todos a sua origem: que ele é nascido em Blumenau e por isso é alemão. Simples assim.
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