terça-feira, 20 de julho de 2021

O Barbeiro e o Pintor


Em várias ocasiões nesta vida a gente se depara com uma mãe super protetora. Na minha infância mesmo eu tinha um amigo que, se a mãe o visse brigando na rua, descia do apartamento e vinha tirar satisfações em defesa do filho. Mesmo numa discussão normal, de futebol ou bola de gude, lá estava ela na janela, de olho pra que o filho não corresse perigo.

No início da década de 1980, quando eu comecei a trabalhar, minha chefe era a mais perfeita tradução da mãe super protetora. Em dois dias da semana o filho fazia um curso lá perto do trabalho e o pai, após buscá-lo na aula, passava no trabalho da mãe, a caminho de casa. Era nessas ocasiões que a gente tinha algum contato com o menino, mesmo assim tendo o pai e a mãe sempre ali por perto.

Na sala onde eu trabalhava, a equipe era formada por dois técnicos, dois datilógrafos, um contínuo e um agente administrativo, que era eu. Sempre tinha muito trabalho. Por isso mesmo, qualquer tempinho vago a gente caía de pau em todo mundo, seja o contínuo da outra seção, seja a secretária do departamento ao lado, o cara do elevador, o porteiro, nada passava por nós sem o nosso carimbo de chacota, galhofa ou lá o que fosse aquilo.

Então, quando Celinho, o Marcelo, filho da chefe, ia passar uns poucos momentos lá no escritório, no fim do expediente, a gente tinha dois trabalhos específicos: zoar o moleque e não deixar a mãe perceber.

Vale sublinhar que, cá pra nós, o guri era um poço de melindre. Tudo o incomodava e nada o agradava. Tinha um monte de manias e a mãe sempre fazia a sua vontade, com aquela voz de mimo, quase pegando o moleque no colo, mesmo com os seus 10 anos e um corpinho recheado.

Qualquer coisa que ele pegasse e tivesse uma poeirinha, ele logo esticava os dedos e pedia pra lavar as mãos. Quando o cadarço desamarrava, ele ia até a mãe pra ela amarrar. A mochila, claro, era o pai que carregava e o lanche dele, as frutinhas, alinhadinhas no pratinho, eram todas picadinhas, pra ele só ter o trabalho de fisgar com o garfinho.

Uma vez alguém de nós foi na copa e trouxe água pra ele. Assim que o copo pousou na mesa do garoto a mãe veio correndo com um pano e nos explicou que o Celinho não gostava que o copo dele ficasse molhado por fora. Tudo que ele bebia não podia ter aquelas gotinhas por fora do copo. Mesmo após lavar, a mãe sempre secava o copo do Celinho.

Em uma segunda-feira qualquer a gente soube que o Celinho tinha sofrido um pequeno acidente no fim de semana e a mãe só iria trabalhar na terça. A turma do trabalho passou o dia todo tentando adivinhar o que teria acontecido e tudo que a gente sugeria era algo que vinha seguido de uma risada no final. Não dava pra imaginar que aquele garoto cheio de manias e mimos tivesse sofrido realmente um acidente.

No dia seguinte, a mãe, ainda super preocupada, veio nos contar que eles foram no barbeiro no sábado de manhã e que, mesmo antes de sair de casa, o menino já perguntava se o cara ia cortar a sua orelha. A mãe, espantada respondia que não, que era uma coisa maluca ele falar aquilo, porque barbeiro não corta a orelha de ninguém, que ele era experiente, que cortava o cabelo de muita gente, muitas crianças e tal.

Só que quando chegou no salão, nos disse a mãe, o filho não quis sentar naqueles suportes de crianças, pra que elas fiquem mais altas na cadeira. Tinha um de bichinho, mas ele não quis. Tinha um de carrinho, mas ele não quis. Tinha um cor de rosa, mas ele não quis. Então, depois de muita luta, o pai foi no carro e pegou uma caixa de madeira na mala e trouxe também uma almofada que ficava no banco traseiro.

A cada vez que o barbeiro passava o pente nos lados da cabeça o menino se afastava e botava a mão na orelha, como que se protegendo de alguma coisa. A mãe falava pra ele ficar quieto e o pai dizia que já estava acabando. Esse roteiro durou todo o tempo do corte, na mesma sequência: ele se afastava, a mãe dizia “quieto” e o pai murmurava “calma, tá quase acabando”.

Numa dessas esquivadas do capeta, quer dizer, do menino, o caixote falseou, a almofada meneou e a tesoura foi direto pro lado, dando uma leve picada, um trisco, bem na orelha do pirralho. Na mesma hora ele deu um grito, a mãe deu outro maior ainda, e o barbeiro, assustado, lascou rápido um pano na orelha, de onde já saía uma gotinha de sangue.

O problema é que aquele pano era o mesmo usado nas costas dos clientes e o barbeiro não percebeu que ele estava cheio de cabelo. Quando aqueles cabelos caíram nos ombros e braços do menino aí mesmo que ele gritou mais ainda, cheio de nojo e sem ter pra onde correr, cercado de gente por todos os lados.

Uma das manicures trouxe um copo d’água, toda solícita, mas o copo estava molhado por fora e a intenção de socorro deu toda errada, para espanto dela, que não entendeu nada daquele caos, naturalmente.

No meio daquele furdunço, os outros barbeiros pararam o trabalho também pra acudir mãe, pai e filho, e cada um tentava acalmar os nervos de um jeito diferente. E tanto que o menino falou que o barbeiro ia cortar a orelha dele que, pronto, aconteceu de verdade.

Enfim, a própria mãe terminou de cortar o cabelo do filho, já em casa, e depois eles foram todos pra pizzaria pra esquecer o ocorrido. “Celinho se cura de todos os problemas, quando entra naquela pizzaria”, pontuou a mãe.

Dando uma de investigador, conversando com o marido da chefe, dias depois, eu descobri que o salão afinal ficava perto da minha casa. “Na esquina da Planalto”, me disse o pai. E eu percebi, com alguma surpresa, que eu conhecia não só a loja de queijos, mas também o próprio barbeiro assassino, que ficava bem ao lado.

Devo dizer que o episódio da orelha cortada, na versão do pessoal do Salão do Pedrinho foi a melhor coisa que eu ouvi em muito tempo. Além do próprio barbeiro, outros baianos como ele, que trabalham lá, cuidaram, verdadeiramente, de me presentear com uma narrativa rica e minuciosa, digna dos melhores roteiristas de comédia. Obviamente, eu não poderia me furtar àquele compromisso e, no dia seguinte mesmo, tratei de reproduzir tudinho, à risca, em cada detalhe, para os meus colegas do trabalho.

Aliás, daquele dia em diante, nos intervalos do expediente, cada vez que alguém dizia a senha Van Gogh, a gente já sabia que era a história do barbeiro que vinha à tona novamente, em outras, e ainda mais hilárias versões.


2 comentários:

  1. Os e-mails automáticos deste Blog, com avisos de novas postagens, vão deixar de funcionar. Então, se você quiser receber as notificações que eu envio, caso ainda não as receba, mande um e-mail para andloureiro@yahoo.com.br

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  2. Por onde andará esse menino mimado?

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