De alguma maneira, Pedro já intuía aquele encontro.
Então, quando a professora apresentou o novo aluno para a turma e disse o seu
nome, Jesus, imediatamente apontou o menino no canto da sala e completou:
Aquele é o Pedro.
O povoado ficava no interior do interior pobre do Brasil.
As casas eram distantes umas das outras, assim como a escola e o pequeno
comércio. Cada casebre tinha sua hortinha e de vez em quando uma feirinha, no
centro da cidade, aos pés da igreja, cuidava de promover os escambos e as
vendas das mercadorias.
Exímio carpinteiro, Jesus um belo dia estacou no
caminho de volta da escola. No meio da trilha ele disse:
– Pedro, me ajuda a construir um barco?
– O quê?
– Um barco. Me ajuda a construir um?
– Nós estamos a 400Km do mar e nem rio perto tem por
aqui.
Ancorados naquela pergunta, os dois ficaram ali
parados um bom tempo. Em silêncio, olhando em volta, pensando em argumentos
cabíveis e desistindo logo depois de cada um deles. Ora um, ora outro chegava a
puxar o fôlego. Mas logo soltava o ar, sem dizer uma palavra.
– A sabedoria chega quando não nos serve para nada.
Não se pode evitar.
– O que é isso?
– Uma frase.
– Que é uma frase eu sei.
– Achei no meio de um livro. Estava na mesa da
professora e ela deixou que eu olhasse. Eu queria só aprender a fazer um barco.
As linhas, o casco, trabalhar as madeiras, as vergas. Um barco, oras. Depois a
gente vê o que faz com ele.
Pedro não se lembra de ter aceito participar da
empreitada, mas não teve um dia em que ele não estivesse ali, ajudando e
trabalhando. As poucas pessoas que passavam pelo caminho da casa de Jesus
achavam aquilo por demais estranho. Uns davam força, outros ficavam tristes
pela natural inutilidade geral do empreendimento.
De qualquer modo, o barco foi durante toda a vida o
elo entre os dois amigos. Juntos desde os tempos da escola, a partir de uma
certa idade foi o longo trabalho com o barco que os fez estar juntos todo o
tempo. E os dois não podiam mais evitar nada daquilo.
As pessoas gostavam de ir visitar Jesus. Em parte,
claro, para ver o barco, ali naquele cenário improvável. Alguns diziam que
jamais tinham visto um assim, de perto, e ficavam admirados com os detalhes das
madeiras e seus encaixes. Mas a verdade é que, o que todo o povoado apreciava
mesmo era a prosa que nascia durante essas visitas. Eles ficavam embevecidos
com as conversas e as palavras de Jesus, e de Pedro também, enquanto mostravam
a obra e explicavam todo o trabalho.
Ninguém sabe ao certo quando o barco ficou pronto. Nem
quanto tempo demorou a lida. A dificuldade na precisão tinha vários motivos. As
madeiras eram buscadas cada vez mais longe do vilarejo e ninguém acreditava que
um dia tudo ficasse pronto em definitivo. Até porque, mesmo depois de tudo dado
por acabado pelos dois amigos – e isso é o que se conta por aquelas bandas – eles
sempre começavam uma nova pintura da embarcação, como forma de evitar os danos
do tempo, da chuva e do sol.
Assim, mesmo não sendo, parecia ser sempre um projeto
em construção. O que não incomodava ninguém. Ainda mais agora, na idade em que
os dois estão, quando mesmo a tinta branca do pincel já não mancha os cabelos
brancos deles, cada vez com mais pingos de tinta.
O impasse, pois, veio recentemente. A equipe da
prefeitura trouxe o médico pra atender o seu Jesus, depois de uma visita dos
auxiliares de saúde. Ele tinha uma tosse assim assim e depois de um exame idem,
iam levá-lo pra capital, só pra um tira-teima de rotina, nada preocupante.
– Pedro, eu não vou fazer exame nenhum. Prefiro sair
por esse mundo e ninguém vai me achar. O mar é enorme e médico nenhum vai me
ligar naqueles fios todos, que ficam colados na gente e apitam o tempo todo.
E Pedro dava um risinho de lado, escondido de todos,
já acostumado com a cultura do povoado de fugir de hospitais e afins, assim
como o outro fugia da cruz e seus afins.
As exigências dos médicos só aumentavam e os
argumentos eram cada vez mais sérios e urgentes. Até que veio o entregador de
moto com a guia que marcava o exame para dali a dois dias. O documento indicava
a hora certa que o carro do SUS viria buscá-lo.
Jesus esperou a chegada de Pedro e perguntou:
– Tu me amas?
Pedro deu uma sonora risada que, em seguida, se
misturou com sua tosse característica e um menear de cabeça que, de forma
alguma, escondia o riso solto.
– Qual é? Só falta dizer que o galo vai cantar três
vezes – e deu mais umas boas risadas, agora acompanhada pelo amigo que batia a
palma da mão no lado do barco, já gargalhando.
Foi então que, naquela mesma madrugada, Pedro ouviu
chamar. Levantou, acendeu o lampião, esfregou os olhos. De novo ouviu o seu
nome:
– Pedro!
Segurou a chama acima dos ombros e foi até a porta,
quando ouviu mais uma vez o seu nome. Embora não reconhecesse a voz com nitidez,
sabia que só podia ser uma pessoa.
Calçou alguma coisa e saiu com o lampião. O dia nascia
com uma espada de raios de sol que transpassava as nuvens e trazia a bruma da
manhã até o chão, num tom âmbar brilhante, esfumaçando o capinzal.
Alguma coisa estava diferente na casa do amigo e
aquilo o assustava. Ele chamou por Jesus, sem resposta. Entrou, procurou nos poucos
cômodos da casa, vasculhando os cantos. Chamou de novo já sem vontade, quase
que sem voz. Então, abriu as janelas e a claridade ainda tênue do dia também
não bastou pra desvendar o que ele ansiava.
Foi até a oficina e depois aos arredores da casa, circundando
a construção. Agora ele só lembrava das palavras do amigo: Que o mar é enorme;
que ninguém vai me achar. Até que, de súbito, seu coração deu um pulo e ele percebeu
que o barco não estava mais lá. Tinha desaparecido.
Sem forças, Pedro caiu de joelhos.
Encolhido no chão sobre as pernas e o cotovelo, deixou-se
abraçar pela terra seca. Ficou assim por um tempo desmedido, até que fechou
todas as portas e janelas e retornou à sua casa.
Parado na soleira da porta, custava-lhe reconhecer a
sua própria habitação. Não tinha sequer a certeza de que entraria.
Nesse momento o galo cantou.
No jornal da tevê o homem lamenta a morte do seu melhor amigo, de nome Jesus. Ao final da matéria, ele diz que escolhe sempre pensar que o amigo, simplesmente, saiu pelos mares, a bordo do barco que construiu durante toda a vida. E finaliza, dizendo ao repórter que prefere pensar assim do que admitir que o grande amigo morreu de Covid, sozinho, num hospital. “Pois isso é muito triste”, disse.