Com duas longas horas de almoço, quase todo mundo lá do trabalho optava por levar comida ou almoçar em casa, no caso daqueles que moravam perto. Nas duas opções não era o almoço em si, ou a qualidade da comida que ditava a regra, mas sim, a possibilidade sagrada de tirar uma soneca após comer.
Eu não estava acostumado com aquilo, por isso sempre andava bastante nessas duas horas. Pra passar o tempo, normalmente, e também pra conhecer o entorno do Campo Grande, o Pelourinho, o Garcia, o Corredor da Vitória, as padarias, sorveterias e, claro, as lojas de doces.
Dependendo do lado que eu escolhia pra caminhar, muitas vezes acabava almoçando no restaurante do Paes Mendonça, um supermercado de lá. Algumas unidades desse mercado tinham o serviço de prato-feito, nas instalações anexas às lojas principais. A comida era ótima e no alto, acima do caixa, eles colocavam uma tabela com os pratos e os valores. A gente então pagava e ia pra mesa esperar ser servido.
Nos dias muito quentes, quase todos, tinha uma opção que eu adorava, que era o Prato de Verão. Um prato enorme, só com frutas da época e mais duas fatias de queijo, duas de presunto e duas salsichas. Era um almoço refrescante, refazedor. De vez em quando eu tento repetir em casa esse prato. Não fica lá tão farto como o baiano, mas dá pra lembrar do Paes Mendonça e das minhas andanças pelo Centro de Salvador.
Uma outra opção, bem comum e saborosa, era a moqueca. Moqueca de quase tudo que a culinária baiana pode criar, até de ingredientes não muito bem definidos.
Pois bem, um belo dia eu saí do trabalho já pensando em moqueca. O dendê estava no ar de alguma forma, como naqueles desenhos em que o gato ou o cachorro são levados pela nuvem cheirosa da comida, e saem flutuando nessa nuvem, hipnotizados pelo cheiro, até aterrissar em frente à iguaria.
Na fila, comecei a ler o nome dos pratos na tabela do dia e estava lá: Moqueca de Fato, preço tal. Eu olhei pros lados, o pessoal comendo, as monitoras servindo, todos ocupados. Moqueca de quê? – pensei com a mão no queixo, inquirindo a alguém que, para minha sorte, cruzasse o olhar comigo.
Nada. Nenhuma resposta.
Foi chegando a minha vez de pedir e eu comecei a temer pelo meu destino gastronômico.
– Moça, essa moqueca de fato é de quê? – perguntei desconcertado.
– É de fato. Moqueca de fato mesmo.
– Não. Eu sei que é moqueca de verdade, legítima. Mas é feita com o quê?
– Mas é isso. É feita de fato. Sabe o que é fato não?
– Acho que não. Só entendi que é moqueca de fato. Mas não sei ainda o que tem dentro. Do que é feita.
– Vai ali e olha um prato do balcão. Depois volta aqui. Só assim mesmo.
Senti que ela já estava me achando o mais ignorante dos mortais em matéria de moqueca. Ainda mais naquele ambiente típico, eu estava me sentindo meio deslocado. Parecia que todos se conheciam já há muito tempo. Se cumprimentavam, abraçavam, e eu não conhecia ninguém. Ainda por cima não conhecia moqueca. Além disso tudo, havia os versos do Caetano, que definiam que ali todos nós éramos quase pretos, quase brancos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres. Enfim, eu era um quase branco que não sabia o que era a tal moqueca de fato.
Segui o conselho da atendente e, assim que vi a moça no balcão preparando um dos pratos, identifiquei na hora. Com alguma alegria nos olhos, voltei pro caixa certo de resolver o dilema:
– Pronto. A moqueca de fato é de dobradinha. É essa que eu quero.
– Vixe moço, dobradinha é com feijão branco. Não é assim não! – e deu uma risada daquelas com gosto.
Eu tentei dizer alguma coisa, argumentar, sei lá, dizer que gostava muito de dobradinha, mas ela me interrompeu, ainda rindo.
– O rapaz tem um sotaque carioca da porra, quer comer moqueca de fato, mas acha que é dobradinha. É não, moço! Olha, esses cariocas são todos uns artistas, mesmo.
Eu não sei dizer se eu ri com a risada da moça do caixa ou se foi com a situação que ela acabava de explicar e que finalizava dizendo que eu é que tinha sotaque. Pra mim era justamente o contrário, pois eu gostava de ouvir os baianos exatamente por causa do sotaque deles.
No final, entre a moqueca e a dobradinha, chegamos a um acordo quanto a comida, naturalmente tendo as risadas de parte a parte como molho, um molho de dendê – sempre o dendê.
– Então, se a sua dobradinha não tem feijão branco, ela é quase uma dobradinha. Aí tá certo!
– Sim, e a sua moqueca, pra mim, é quase uma moqueca, embora seja de fato, o que eu adoro.
Se fosse um quase brinde, nós nos saudaríamos com um sonoro e alegre quase bater de mãos e, claro, bebendo uma caipirinha de caju. Quase cheinha de gelo.
E certamente diríamos um para o outro:
– Viva Caetano!
– Com certeza!
esse carioca adora Salvador!
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