quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O Barco


De alguma maneira, Pedro já intuía aquele encontro. Então, quando a professora apresentou o novo aluno para a turma e disse o seu nome, Jesus, imediatamente apontou o menino no canto da sala e completou: Aquele é o Pedro.

O povoado ficava no interior do interior pobre do Brasil. As casas eram distantes umas das outras, assim como a escola e o pequeno comércio. Cada casebre tinha sua hortinha e de vez em quando uma feirinha, no centro da cidade, aos pés da igreja, cuidava de promover os escambos e as vendas das mercadorias.

Exímio carpinteiro, Jesus um belo dia estacou no caminho de volta da escola. No meio da trilha ele disse:

– Pedro, me ajuda a construir um barco?

– O quê?

– Um barco. Me ajuda a construir um?

– Nós estamos a 400Km do mar e nem rio perto tem por aqui.

Ancorados naquela pergunta, os dois ficaram ali parados um bom tempo. Em silêncio, olhando em volta, pensando em argumentos cabíveis e desistindo logo depois de cada um deles. Ora um, ora outro chegava a puxar o fôlego. Mas logo soltava o ar, sem dizer uma palavra.

– A sabedoria chega quando não nos serve para nada. Não se pode evitar.

– O que é isso?

– Uma frase.

– Que é uma frase eu sei.

– Achei no meio de um livro. Estava na mesa da professora e ela deixou que eu olhasse. Eu queria só aprender a fazer um barco. As linhas, o casco, trabalhar as madeiras, as vergas. Um barco, oras. Depois a gente vê o que faz com ele.

Pedro não se lembra de ter aceito participar da empreitada, mas não teve um dia em que ele não estivesse ali, ajudando e trabalhando. As poucas pessoas que passavam pelo caminho da casa de Jesus achavam aquilo por demais estranho. Uns davam força, outros ficavam tristes pela natural inutilidade geral do empreendimento.

De qualquer modo, o barco foi durante toda a vida o elo entre os dois amigos. Juntos desde os tempos da escola, a partir de uma certa idade foi o longo trabalho com o barco que os fez estar juntos todo o tempo. E os dois não podiam mais evitar nada daquilo.

As pessoas gostavam de ir visitar Jesus. Em parte, claro, para ver o barco, ali naquele cenário improvável. Alguns diziam que jamais tinham visto um assim, de perto, e ficavam admirados com os detalhes das madeiras e seus encaixes. Mas a verdade é que, o que todo o povoado apreciava mesmo era a prosa que nascia durante essas visitas. Eles ficavam embevecidos com as conversas e as palavras de Jesus, e de Pedro também, enquanto mostravam a obra e explicavam todo o trabalho.

Ninguém sabe ao certo quando o barco ficou pronto. Nem quanto tempo demorou a lida. A dificuldade na precisão tinha vários motivos. As madeiras eram buscadas cada vez mais longe do vilarejo e ninguém acreditava que um dia tudo ficasse pronto em definitivo. Até porque, mesmo depois de tudo dado por acabado pelos dois amigos – e isso é o que se conta por aquelas bandas – eles sempre começavam uma nova pintura da embarcação, como forma de evitar os danos do tempo, da chuva e do sol.

Assim, mesmo não sendo, parecia ser sempre um projeto em construção. O que não incomodava ninguém. Ainda mais agora, na idade em que os dois estão, quando mesmo a tinta branca do pincel já não mancha os cabelos brancos deles, cada vez com mais pingos de tinta.

O impasse, pois, veio recentemente. A equipe da prefeitura trouxe o médico pra atender o seu Jesus, depois de uma visita dos auxiliares de saúde. Ele tinha uma tosse assim assim e depois de um exame idem, iam levá-lo pra capital, só pra um tira-teima de rotina, nada preocupante.

– Pedro, eu não vou fazer exame nenhum. Prefiro sair por esse mundo e ninguém vai me achar. O mar é enorme e médico nenhum vai me ligar naqueles fios todos, que ficam colados na gente e apitam o tempo todo.

E Pedro dava um risinho de lado, escondido de todos, já acostumado com a cultura do povoado de fugir de hospitais e afins, assim como o outro fugia da cruz e seus afins.

As exigências dos médicos só aumentavam e os argumentos eram cada vez mais sérios e urgentes. Até que veio o entregador de moto com a guia que marcava o exame para dali a dois dias. O documento indicava a hora certa que o carro do SUS viria buscá-lo.

Jesus esperou a chegada de Pedro e perguntou:

– Tu me amas?

Pedro deu uma sonora risada que, em seguida, se misturou com sua tosse característica e um menear de cabeça que, de forma alguma, escondia o riso solto.

– Qual é? Só falta dizer que o galo vai cantar três vezes – e deu mais umas boas risadas, agora acompanhada pelo amigo que batia a palma da mão no lado do barco, já gargalhando.

Foi então que, naquela mesma madrugada, Pedro ouviu chamar. Levantou, acendeu o lampião, esfregou os olhos. De novo ouviu o seu nome:

– Pedro!

Segurou a chama acima dos ombros e foi até a porta, quando ouviu mais uma vez o seu nome. Embora não reconhecesse a voz com nitidez, sabia que só podia ser uma pessoa.

Calçou alguma coisa e saiu com o lampião. O dia nascia com uma espada de raios de sol que transpassava as nuvens e trazia a bruma da manhã até o chão, num tom âmbar brilhante, esfumaçando o capinzal.

Alguma coisa estava diferente na casa do amigo e aquilo o assustava. Ele chamou por Jesus, sem resposta. Entrou, procurou nos poucos cômodos da casa, vasculhando os cantos. Chamou de novo já sem vontade, quase que sem voz. Então, abriu as janelas e a claridade ainda tênue do dia também não bastou pra desvendar o que ele ansiava.

Foi até a oficina e depois aos arredores da casa, circundando a construção. Agora ele só lembrava das palavras do amigo: Que o mar é enorme; que ninguém vai me achar. Até que, de súbito, seu coração deu um pulo e ele percebeu que o barco não estava mais lá. Tinha desaparecido.

Sem forças, Pedro caiu de joelhos.

Encolhido no chão sobre as pernas e o cotovelo, deixou-se abraçar pela terra seca. Ficou assim por um tempo desmedido, até que fechou todas as portas e janelas e retornou à sua casa.

Parado na soleira da porta, custava-lhe reconhecer a sua própria habitação. Não tinha sequer a certeza de que entraria.

Nesse momento o galo cantou.




No jornal da tevê o homem lamenta a morte do seu melhor amigo, de nome Jesus. Ao final da matéria, ele diz que escolhe sempre pensar que o amigo, simplesmente, saiu pelos mares, a bordo do barco que construiu durante toda a vida. E finaliza, dizendo ao repórter que prefere pensar assim do que admitir que o grande amigo morreu de Covid, sozinho, num hospital. “Pois isso é muito triste”, disse.

Eu então quis contar essa história de um outro jeito.


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