segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Parasita e o Rabo


Entraram mãe e filho na gerência de serviços da concessionária. Ela, gesticulando muito e falando em tom elevado, discordava do rapaz e, tentando ensinar, recordava o fato recém ocorrido, pelo que eu entendi, em algum semáforo próximo dali.

– Não dou dinheiro pra vagabundo nenhum.

– Mas, mãe, o velhinho estava de muleta, uma muleta toda quebrada, e ele não tinha uma parte da perna. Não era vagabundo, não!

– Você acha que, por não ter um pedaço da perna, aquele homem não pode trabalhar? Claro que pode. Vou te dizer uma coisa: aquele homem é um parasita, um parasita da sociedade. A sociedade trabalha pra sustentar esse tipo de gente. E tem muitos assim, parasitando a vida toda.

– Mas, mãe, eu só acho que as coisas não são simples assim.

– As leis nesse país permitem tudo, meu filho. Até pagar salário pra quem não trabalha! E eu te digo: Tá tudo errado!

Eu e mais uns três clientes, que estávamos aguardando atendimento, não pudemos deixar de ouvir aquele diálogo. Primeiro a gente tentou desviar o olhar da cena, pra dar um quê de distanciamento, mas intuo que não fomos convincentes o suficiente. O rapaz, filho da senhora, por sua vez, também não pôde esconder o desconforto, não só pelo volume da voz da mãe, mas principalmente, pelas suas palavras, com as quais ele, mesmo timidamente, não concordava.

A secretária então perguntou quem de nós, ali, iria fazer a primeira revisão e a tal senhora foi convidada a ir até a sua mesa. Uma auxiliar veio oferecer um cafezinho e explicou que a prioridade de atendimento para a primeira revisão é uma norma da empresa e que logo seríamos devidamente atendidos. Sem escolha, todos dissemos um ok, de praxe.

Foi então que algo, tipo um teatro, se iniciou naquela sala sem que tivéssemos combinado ou mesmo ensaiado os próximos gestos, digamos, sequenciados.

Preenchendo o formulário do atendimento, para cada item que a secretária anunciava, nós três, sentados no banco de espera, nos olhávamos ritmadamente, depois sorriamos e, em seguida, levantávamos as sobrancelhas, como quem passa a entender o que antes não estava claro. Foi assim com algumas perguntas como o endereço, por exemplo, e o modelo do carro, que a gente já sabia que era zero quilômetro e estava na primeira revisão.

Então veio a pergunta crucial, bem já no final, quando o último campo foi lido pela moça:

– Além do celular, tem algum outro telefone do trabalho que a senhora queira deixar?

– Não, só o celular mesmo. Eu não trabalho. Sou pensionista das forças armadas. Meu pai era oficial da Marinha.

– Olha, que interessante! – disse a secretária, sem perceber que a ficha tinha caído definitivamente pra todo mundo, ao mesmo tempo.

E era uma ficha cheia de vergonha, que descortinara o egoísmo humano num plano inacreditável. Não só pela falta de empatia, de sentimento de fraternidade ou mesmo pela ausência de percepção de que se tratava afinal de um semelhante, de um igual, por mais diferente que ele possa ter parecido. Uma sensação ruim sobre o episódio com o homem do semáforo, prontamente nos veio à cabeça.

Ficamos em silêncio total até que a senhora saísse da sala. Nem o gerente teve vontade de chamar o próximo cliente. Um mecânico até entrou, subitamente, perguntando algo ao superior, mas foi paralisado ante a mão espalmada do chefe e logo também se aquietou no canto, estacado, esperando que a pausa daquele universo se diluísse.

Quando eu sentei na mesa com os papéis da minha revisão, o gerente suspirou com calma e se dirigiu a nós três, abrindo os braços.

– O que foi isso, minha gente? Vocês viram o que eu vi?

– Não só vimos como ouvimos, o que é muito pior – alguém respondeu em voz baixa.

Depois de um breve silêncio, alguém falou:

– Parasita.

– Pra mim, parasita – assentiu o cliente ao meu lado.

– Parasita total – falei, com desânimo.

Parece que nenhum de nós ia conseguir sair dali sem conversar, entre humanos, sobre o ocorrido. Destrinchar aquele acontecimento se impunha. Era um nó na garganta que precisava ser desfeito, sob pena de durar o dia todo. Então, nada de atendimento, de formulário ou de revisão alguma. A nossa perplexidade era um enorme elefante e precisava ser tirado daquela sala.

A partir daí talvez eu não saiba pormenorizar o que foi dito por cada um. É claro que a questão da lei que concede pensão para filhas de militares foi, consensualmente, tida como uma excrescência nos dias de hoje. Injustificável. Por outro lado, a miséria, a pobreza que se alastra por esse país, trazendo a fome para a linha de frente dos semáforos das cidades precisa ser, minimamente, acolhida por todos nós, humanos. Seja propriamente com auxílios substanciais; seja com a compreensão e solidariedade de cada um; seja até pelo desalento quando não temos condição de contribuir. Mas, jamais, aquele homem que pede será um parasita. Em nenhuma hipótese!

Também concordamos que estamos a viver uma longa e triste noite. Impensável em tempos civilizados. Uma noite que nos encobre a todos, como uma penumbra sem fim, feita de torpeza intelectual. À frente, puxando o cortejo macabro, vai um berrante mentalmente primitivo, involutivo, um ser dotado de um atraso conceitual definitivo. Cujo submundo de onde saiu foi aberto com o beneplácito de muita gente com estudo, salário, bens e alguma miopia. Com sarcasmo e crueldade a besta carrega a marca do fim. Um fim em si mesmo. Um fim e só um fim.

E para não dizer que eu esqueci das flores e não falei do rabo que está no título, aqui vai. O fato é que aquele mecânico, que a certa altura entrou na sala e foi instado a se calar subitamente, quando dali do seu canto tomou conhecimento de todo o lamentável episódio, balançou a cabeça e sentenciou em nossa direção:

– Então, era a parasita legítima chamando o outro de parasita. O macaco nunca olha mesmo pro seu rabo. Era o que a minha mãe costumava falar pra gente. Antes de olhar o rabo do outro, olhe o seu. Eita, minha mãe sabia de tudo mesmo.

Dona Jurema também. Ah, se sabia!

 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O Infarto

 

Meu braço esquerdo amanheceu um pouco dormente. Na mesma hora eu lembrei dos relatos das pessoas que sofreram infarto, dando conta de que tudo havia começado com uma incômoda dormência nos membros superiores.

Pra não preocupar, resolvi não falar nada pra ninguém. Mas não pude evitar de ficar pensando no assunto o dia todo, uma vez que o braço continuava com o formigamento e, mesmo sem ser contínuo, o fato de ficar aumentando e diminuindo, por si só já me deixava desconfiado.

Na parte da manhã eu até procurei me manter calmo e tal. Mas logo depois do almoço a minha ideia fixa já era que, se aquele era o meu último dia de vida, eu tinha de estar minimamente preparado. E preparado, pra mim, significava imaginar quem se importaria com isso, quem ficaria triste ou mesmo o que seria feito dos meus violões, o piano, a Romilda, minha bicicleta querida, ou a minha coleção de moedas antigas. Os livros, pensei, os amigos saberão dividi-los com parcimônia e até se rirão das minhas anotações a lápis em um punhado de suas páginas.

Me lembrei também de alguns amigos do tempo da faculdade e tentei intuir como eles receberiam a repentina notícia. Da mesma forma, como se daria com os colegas de trabalho de Salvador, São Paulo ou do Rio, dos quais, com toda a certeza, eu guardo muito mais lembranças deles do que eles de mim. Mas a vida é assim – suspirava eu, melancólico e absorto nesse exercício de não-futurologia mórbida.

Por diversas vezes também eu ouvi histórias nas quais as pessoas, dias ou mesmo horas antes de partir, tinham dado sinais evidentes de sua despedida, fazendo ou dizendo coisas que, só depois da sua partida, teriam sido decifradas como tal. Era como se a pessoa soubesse que a sua hora estava próxima, por isso fez e disse aquilo de determinada maneira.

E era exatamente assim que eu encarava aquele sentimento novo: como sendo um sinal pra que eu entendesse a proximidade do fato avizinhado. Pois, afinal, cada um tem o seu tempo e a morte nada mais é do que o encontro com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, como recitava o João Grilo do Suassuna.

Aquele dia se espichou modorrento até que, mudando de canal, achei um jogo de tênis na tevê. Era o Guga em um torneio na França, onde ele tentava o bicampeonato. Não era a final, mas mesmo assim foi talvez um dos jogos mais difíceis que o brasileiro já teve naquelas quadras de saibro. O adversário não errava nada. Ao contrário, era astuto pra aproveitar todas as incertezas e hesitações do nosso tenista, o bastante pra elevar o jogo aos píncaros do nervosismo.

Foi o próprio locutor que me chamou a atenção, depois de uma advertência do comentarista, ao dizer que aquele jogo era mesmo um teste pra cardíacos. Na mesma hora eu estanquei no sofá, lembrei do meu braço dormente desde a manhã e pensei que, poxa, só falta eu infartar aqui, vendo o jogo do Guga. Que bela maneira de morrer: o sujeito fica na aflição pelo jogo, o seu ídolo ganha a partida, ele fica super feliz e depois morre por não conseguir controlar as fortes emoções conflitantes e sucessivas. Ah, não!

O teatro do jogo se desenrolava, nervoso como nunca. Dizia o repórter na quadra que nunca tinha visto algo assim. Uma troca frenética de bolas, na qual ninguém consegue abrir vantagem suficiente que signifique alguma mínima tranquilidade. E os pontos pra fechar os games são brigados até a última passada.

Em um desses momentos de 40 a 40 eu decidi ir dar uma olhada em outro canal. Sim, era um escape preventivo e pra lá de necessário. Medo. Puro medo. Eu já estava em um ponto em que sentia as batidas do coração no pescoço. E eram fortes. Preocupantemente fortes, que só dificultavam o meu esforço em não dar sinais externos alarmantes sobre o meu real estado de saúde.

Assim eu fiz. Só de vez em quando eu ia lá, espiar o canal do jogo, e rapidinho voltava a fugir, apertando o botão do controle remoto. Era só mesmo o tempo de ver o placar e deu. Dali, tornava a só imaginar os pontos sendo jogados e foi indo assim até que, uma hora que eu cliquei de volta, já estavam comemorando a vitória épica do tenista brasileiro. Ufa! Os comentaristas elogiavam a frieza do jogador nos pontos cruciais e davam parabéns, claro, com alguma dose de facécia, aos heroicos espectadores, cujos corações sobreviveram àquela batalha angustiante no saibro francês.

Foi neste instante que eu notei as luzes azuis e vermelhas entrando pelas janelas, piscando alternadamente nas paredes da sala. Cheguei ao parapeito imaginando uma viatura policial, quando me deparei com uma ambulância na porta do condomínio, que já estava com as portas traseiras abertas. Os paramédicos saíam às pressas com seus equipamentos e entravam no bloco da frente, onde já esperavam alguns vizinhos, a liberar o caminho pela portaria adentro.

Passados poucos minutos, saíram todos, igualmente apressados, levando um senhor na maca. Deu pra ver alguns fios atados ao paciente e também um cateter ligado ao que parecia ser um soro, preso em uma haste e mantido no alto por um dos enfermeiros. Todos entraram na ambulância e, ao sair do prédio, foram seguidos por um carro que, no mesmo instante, vencia o portão da garagem.

Eu ainda fiquei na janela por um instante, até me dar conta de que os meus “sintomas” haviam desaparecido por completo. Nem dormência, nem pulsação acelerada, tampouco pensamentos de despedida desse mundo. Um copo d’água bem geladinho e uma relaxada no mesmo sofá aflitivo de antes e tudo estava em ordem outra vez, a ponto de eu calmamente rememorar a cena do senhor há pouco socorrido, e chegar a pensar se, por acaso, ele também tinha sentido os tais sinais de um fim se acercando.

No dia seguinte, assim que passei pelo zelador, ele me disse que o vizinho tinha se sentido mal vendo o jogo do Guga e que ainda bem que foi socorrido a tempo, pois que foi um baita de um infarto.

– Mas ele tinha sentido alguma coisa estranha durante o dia, assim, digo, antes de infartar?

– Nada. Num minuto estava bem e no outro infartou. Disseram que ele estava muito bem vendo o jogo do Guga e depois começou a tremer e a se curvar pro lado. Ah, essas coisas são assim mesmo, a gente não sente nada até a máquina parar – disse o zelador, pondo a mão no coração.

Eu fui saindo em direção ao carro e, no caminho, só pensava que ele não entendia nada de jogo eletrizante, angustiante e que ainda bem que eu tinha sentido todas aquelas coisas desde cedo. Do contrário, insistiria em ver a partida até o final, não teria mudado de canal e, pum, era eu que tinha infartado. Bonito!

Só digo a vocês que essa lição eu aprendi: pelo sim, pelo não, de hoje em diante, quando eu sentir essas dormências estranhas, sinais de que a minha hora está chegando, jamais vou sentar na frente da tevê pra assistir a um jogo de tênis. Jamais!

 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Iridium

 

Desde criança usando óculos, em muitos momentos da vida eu tive orgulho da minha miopia. Me sentia uma pessoa com um dom singular: o de ler coisas que ninguém conseguia. Seja na etiqueta das roupas, as instruções dos aparelhos eletrônicos, recomendações médicas no canto das bulas, tudo era motivo pra eu ler tudo com um sorriso no rosto, depois de ouvir os elogios efusivos que surgiam, fartos de incredulidade.

 Com cinco anos, ao sentar na carteira da sala de aula e perceber que a professora escrevia com giz invisível, me dei conta de que o problema era dos meus olhos e não do giz ou do quadro negro. Comecei então com 1.75 negativo, conforme gostava de dizer meu pai, que era ótico. Para ele, qualquer que fosse o grau, devia vir acompanhado do seu sinal respectivo, de mais ou de menos, para indicar o tipo de lente, sendo o segundo ligado à miopia.

O meu grau era considerado normal para a oftalmologia, mas não para aquela minha idade. Então, depois de dominar devidamente as letras e os números do quadro da escola, visto que eu já sabia ler bem e até fazia contas de dois algarismos, por estudar em casa com minha tia Iracema, eu passei até a me aventurar nas atividades do recreio, jogando bola, correndo o tempo todo, pulando corda e balançando no galho de uma amendoeira enorme que tinha bem no meio do pátio.

 Me lembro nitidamente que uma vez meu pai chegou com dois amigos. Um deles tinha uma caneta tinteiro, linda, que tinha uma ponta que parecia ser de ouro. Nessa extremidade tinha algo escrito que ninguém conseguia ler, de tão pequeno. Quando meu pai entrou estava justamente dizendo pra eles que eu ia conseguir o que ninguém conseguiu, nem mesmo usando uma lupa, e passou a caneta pra mim. Na mesma hora eu tirei os óculos e fui direto por o foco na caneta.

 – Iridium. Aqui está escrito Iridium.

 Enquanto eles riam e meu pai se orgulhava, eu voltava a botar os óculos e, meio sem jeito, recebia os elogios pelo feito recente.

 Ainda na adolescência, em uma das consultas, o médico alertou que o meu grau ia aumentar conforme eu fosse crescendo. Disse isso recomendando que meus pais me levassem pra fazer exames de vista periódicos, pelo menos anuais, pra ir corrigindo e trocando as lentes, conforme necessário. Assim, eu entrei na adolescência com -5.0 e, por volta dos 30 anos, já batia nos -7.5 graus. Quando meu médico indicou a cirurgia pra colocação de lentes intraoculares eu já estava com -12.0 e a lente de contato quase já não adiantava para o olho esquerdo.

 Assim, há cerca de quatro anos eu troquei aquele alto grau negativo, de lentes grossas e incômodas, por um pequeno grau positivo, de +1,50, só pra conforto nas leituras e pra uso ao computador. Um grau pra perto, que, por um lado, é algo que combina com a minha condição provecta, e por outro é uma incrível proeza da ciência, quando implanta, dentro do olho, uma lente flexível, minúscula, que zera o grau das pessoas. Pura façanha do intelecto científico, há que se dizer.

 E foi justamente dessa façanha que adveio o meu drama de consciência nessa manhã insólita. Um pedal de efeitos para violão chegou pelo correio. Abri o pacote e, depois de verificar o conteúdo, dei de cara com o respectivo manual de uso. Fundo vermelho, texto em preto e letras miúdas, muito miúdas. Os desenhos, ok. E, automaticamente, eu me peguei tirando os óculos de perto pra poder ler o manual, imitando o gesto que eu fazia quando tinha aquela potente miopia de outrora. Naquele tempo era só eu tirar os óculos e pronto, o meu olho era uma lente de aumento natural. E agora, digamos que eu tenha um olho normal.

 É claro que eu prefiro esses novos olhos. Nenhuma dúvida quanto a isso. Mas olhando aquele livrinho, tentando decifrar aquelas linhas, cheias de caracteres indecifráveis, me deu uma certa nostalgia de ter aquela capacidade pra ler os manuais, as bulas e o fundo dos equipamentos eletrônicos, que ninguém conseguia ler.

 Não me queixo um minuto sequer de ter usado óculos a vida toda. Graças ao meu pai.

 Joguei muita bola de óculos. Quebrei muitas lentes. Perdi uma quantidade considerável também, quando tirava por ocasião de um mergulho ou lá o que fosse. Na própria amendoeira da escola, foi lá o primeiro que quebrei. E nas quedas de bicicleta, que foram muitas, quase sempre era mais outro que se ia. Enfim, pura nostalgia.

 E na ponta da caneta estava escrito Iridium.