Entraram mãe e
filho na gerência de serviços da concessionária. Ela, gesticulando muito e
falando em tom elevado, discordava do rapaz e, tentando ensinar, recordava o
fato recém ocorrido, pelo que eu entendi, em algum semáforo próximo dali.
– Não dou
dinheiro pra vagabundo nenhum.
– Mas, mãe, o
velhinho estava de muleta, uma muleta toda quebrada, e ele não tinha uma parte
da perna. Não era vagabundo, não!
– Você acha
que, por não ter um pedaço da perna, aquele homem não pode trabalhar? Claro que
pode. Vou te dizer uma coisa: aquele homem é um parasita, um parasita da
sociedade. A sociedade trabalha pra sustentar esse tipo de gente. E tem muitos assim, parasitando a vida toda.
– Mas, mãe, eu
só acho que as coisas não são simples assim.
– As leis
nesse país permitem tudo, meu filho. Até pagar salário pra quem não trabalha! E
eu te digo: Tá tudo errado!
Eu e mais uns
três clientes, que estávamos aguardando atendimento, não pudemos deixar de
ouvir aquele diálogo. Primeiro a gente tentou desviar o olhar da cena, pra dar
um quê de distanciamento, mas intuo que não fomos convincentes o suficiente. O
rapaz, filho da senhora, por sua vez, também não pôde esconder o desconforto,
não só pelo volume da voz da mãe, mas principalmente, pelas suas palavras, com
as quais ele, mesmo timidamente, não concordava.
A secretária
então perguntou quem de nós, ali, iria fazer a primeira revisão e a tal senhora
foi convidada a ir até a sua mesa. Uma auxiliar veio oferecer um cafezinho e explicou
que a prioridade de atendimento para a primeira revisão é uma norma da empresa
e que logo seríamos devidamente atendidos. Sem escolha, todos dissemos um ok,
de praxe.
Foi então que
algo, tipo um teatro, se iniciou naquela sala sem que tivéssemos combinado ou
mesmo ensaiado os próximos gestos, digamos, sequenciados.
Preenchendo o
formulário do atendimento, para cada item que a secretária anunciava, nós três,
sentados no banco de espera, nos olhávamos ritmadamente, depois sorriamos e, em
seguida, levantávamos as sobrancelhas, como quem passa a entender o que antes
não estava claro. Foi assim com algumas perguntas como o endereço, por exemplo,
e o modelo do carro, que a gente já sabia que era zero quilômetro e estava na
primeira revisão.
Então veio a
pergunta crucial, bem já no final, quando o último campo foi lido pela moça:
– Além do
celular, tem algum outro telefone do trabalho que a senhora queira deixar?
– Não, só o
celular mesmo. Eu não trabalho. Sou pensionista das forças armadas. Meu pai era
oficial da Marinha.
– Olha, que
interessante! – disse a secretária, sem perceber que a ficha tinha caído
definitivamente pra todo mundo, ao mesmo tempo.
E era uma
ficha cheia de vergonha, que descortinara o egoísmo humano num plano
inacreditável. Não só pela falta de empatia, de sentimento de fraternidade ou mesmo
pela ausência de percepção de que se tratava afinal de um semelhante, de um
igual, por mais diferente que ele possa ter parecido. Uma sensação ruim sobre o
episódio com o homem do semáforo, prontamente nos veio à cabeça.
Ficamos em silêncio
total até que a senhora saísse da sala. Nem o gerente teve vontade de chamar o
próximo cliente. Um mecânico até entrou, subitamente, perguntando algo ao
superior, mas foi paralisado ante a mão espalmada do chefe e logo também se
aquietou no canto, estacado, esperando que a pausa daquele universo se diluísse.
Quando eu
sentei na mesa com os papéis da minha revisão, o gerente suspirou com calma e se
dirigiu a nós três, abrindo os braços.
– O que foi
isso, minha gente? Vocês viram o que eu vi?
– Não só vimos
como ouvimos, o que é muito pior – alguém respondeu em voz baixa.
Depois de um
breve silêncio, alguém falou:
– Parasita.
– Pra mim, parasita
– assentiu o cliente ao meu lado.
– Parasita
total – falei, com desânimo.
Parece que nenhum
de nós ia conseguir sair dali sem conversar, entre humanos, sobre o ocorrido. Destrinchar
aquele acontecimento se impunha. Era um nó na garganta que precisava ser
desfeito, sob pena de durar o dia todo. Então, nada de atendimento, de
formulário ou de revisão alguma. A nossa perplexidade era um enorme elefante e
precisava ser tirado daquela sala.
A partir daí talvez
eu não saiba pormenorizar o que foi dito por cada um. É claro que a questão da
lei que concede pensão para filhas de militares foi, consensualmente, tida como
uma excrescência nos dias de hoje. Injustificável. Por outro lado, a miséria, a
pobreza que se alastra por esse país, trazendo a fome para a linha de frente
dos semáforos das cidades precisa ser, minimamente, acolhida por todos nós,
humanos. Seja propriamente com auxílios substanciais; seja com a compreensão e
solidariedade de cada um; seja até pelo desalento quando não temos condição de
contribuir. Mas, jamais, aquele homem que pede será um parasita. Em nenhuma
hipótese!
Também
concordamos que estamos a viver uma longa e triste noite. Impensável em tempos
civilizados. Uma noite que nos encobre a todos, como uma penumbra sem fim, feita
de torpeza intelectual. À frente, puxando o cortejo macabro, vai um berrante
mentalmente primitivo, involutivo, um ser dotado de um atraso conceitual
definitivo. Cujo submundo de onde saiu foi aberto com o beneplácito de muita
gente com estudo, salário, bens e alguma miopia. Com sarcasmo e crueldade a
besta carrega a marca do fim. Um fim em si mesmo. Um fim e só um fim.
E para não
dizer que eu esqueci das flores e não falei do rabo que está no título, aqui
vai. O fato é que aquele mecânico, que a certa altura entrou na sala e foi
instado a se calar subitamente, quando dali do seu canto tomou conhecimento de
todo o lamentável episódio, balançou a cabeça e sentenciou em nossa direção:
– Então, era a
parasita legítima chamando o outro de parasita. O macaco nunca olha mesmo pro
seu rabo. Era o que a minha mãe costumava falar pra gente. Antes de olhar o
rabo do outro, olhe o seu. Eita, minha mãe sabia de tudo mesmo.
Dona Jurema
também. Ah, se sabia!