Meu braço
esquerdo amanheceu um pouco dormente. Na mesma hora eu lembrei dos relatos das
pessoas que sofreram infarto, dando conta de que tudo havia começado com uma
incômoda dormência nos membros superiores.
Pra não
preocupar, resolvi não falar nada pra ninguém. Mas não pude evitar de ficar
pensando no assunto o dia todo, uma vez que o braço continuava com o
formigamento e, mesmo sem ser contínuo, o fato de ficar aumentando e
diminuindo, por si só já me deixava desconfiado.
Na parte da
manhã eu até procurei me manter calmo e tal. Mas logo depois do almoço a minha
ideia fixa já era que, se aquele era o meu último dia de vida, eu tinha de
estar minimamente preparado. E preparado, pra mim, significava imaginar quem se
importaria com isso, quem ficaria triste ou mesmo o que seria feito dos meus
violões, o piano, a Romilda, minha bicicleta querida, ou a minha coleção de
moedas antigas. Os livros, pensei, os amigos saberão dividi-los com parcimônia
e até se rirão das minhas anotações a lápis em um punhado de suas páginas.
Me lembrei
também de alguns amigos do tempo da faculdade e tentei intuir como eles
receberiam a repentina notícia. Da mesma forma, como se daria com os colegas de
trabalho de Salvador, São Paulo ou do Rio, dos quais, com toda a certeza, eu
guardo muito mais lembranças deles do que eles de mim. Mas a vida é assim –
suspirava eu, melancólico e absorto nesse exercício de não-futurologia mórbida.
Por diversas
vezes também eu ouvi histórias nas quais as pessoas, dias ou mesmo horas antes
de partir, tinham dado sinais evidentes de sua despedida, fazendo ou dizendo coisas
que, só depois da sua partida, teriam sido decifradas como tal. Era como se a
pessoa soubesse que a sua hora estava próxima, por isso fez e disse aquilo de
determinada maneira.
E era exatamente
assim que eu encarava aquele sentimento novo: como sendo um sinal pra que eu
entendesse a proximidade do fato avizinhado. Pois, afinal, cada um tem o seu
tempo e a morte nada mais é do que o encontro com o único mal irremediável, aquilo
que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, como recitava o João
Grilo do Suassuna.
Aquele dia se
espichou modorrento até que, mudando de canal, achei um jogo de tênis na tevê.
Era o Guga em um torneio na França, onde ele tentava o bicampeonato. Não era a
final, mas mesmo assim foi talvez um dos jogos mais difíceis que o brasileiro
já teve naquelas quadras de saibro. O adversário não errava nada. Ao contrário,
era astuto pra aproveitar todas as incertezas e hesitações do nosso tenista, o
bastante pra elevar o jogo aos píncaros do nervosismo.
Foi o próprio
locutor que me chamou a atenção, depois de uma advertência do comentarista, ao
dizer que aquele jogo era mesmo um teste pra cardíacos. Na mesma hora eu
estanquei no sofá, lembrei do meu braço dormente desde a manhã e pensei que,
poxa, só falta eu infartar aqui, vendo o jogo do Guga. Que bela maneira de
morrer: o sujeito fica na aflição pelo jogo, o seu ídolo ganha a partida, ele
fica super feliz e depois morre por não conseguir controlar as fortes emoções
conflitantes e sucessivas. Ah, não!
O teatro do jogo se desenrolava, nervoso como nunca. Dizia o repórter na quadra que nunca tinha visto algo assim. Uma troca frenética de bolas, na qual
ninguém consegue abrir vantagem suficiente que signifique alguma mínima tranquilidade.
E os pontos pra fechar os games são brigados até a última passada.
Em um desses
momentos de 40 a 40 eu decidi ir dar uma olhada em outro canal. Sim, era um
escape preventivo e pra lá de necessário. Medo. Puro medo. Eu já estava em um
ponto em que sentia as batidas do coração no pescoço. E eram fortes.
Preocupantemente fortes, que só dificultavam o meu esforço em não dar sinais
externos alarmantes sobre o meu real estado de saúde.
Assim eu fiz. Só
de vez em quando eu ia lá, espiar o canal do jogo, e rapidinho voltava a fugir,
apertando o botão do controle remoto. Era só mesmo o tempo de ver o placar e
deu. Dali, tornava a só imaginar os pontos sendo jogados e foi indo assim até que, uma hora que eu
cliquei de volta, já estavam comemorando a vitória épica do tenista brasileiro.
Ufa! Os comentaristas elogiavam a frieza do jogador nos pontos cruciais e davam
parabéns, claro, com alguma dose de facécia, aos heroicos espectadores, cujos
corações sobreviveram àquela batalha angustiante no saibro francês.
Foi neste instante que eu notei as luzes azuis e vermelhas entrando pelas janelas, piscando alternadamente
nas paredes da sala. Cheguei ao parapeito imaginando uma viatura policial,
quando me deparei com uma ambulância na porta do condomínio, que já estava com
as portas traseiras abertas. Os paramédicos saíam às pressas com seus
equipamentos e entravam no bloco da frente, onde já esperavam alguns vizinhos, a
liberar o caminho pela portaria adentro.
Passados
poucos minutos, saíram todos, igualmente apressados, levando um senhor na maca.
Deu pra ver alguns fios atados ao paciente e também um cateter ligado ao que
parecia ser um soro, preso em uma haste e mantido no alto por um dos enfermeiros.
Todos entraram na ambulância e, ao sair do prédio, foram seguidos por um carro
que, no mesmo instante, vencia o portão da garagem.
Eu ainda
fiquei na janela por um instante, até me dar conta de que os meus “sintomas”
haviam desaparecido por completo. Nem dormência, nem pulsação acelerada,
tampouco pensamentos de despedida desse mundo. Um copo d’água bem geladinho e uma
relaxada no mesmo sofá aflitivo de antes e tudo estava em ordem outra vez, a
ponto de eu calmamente rememorar a cena do senhor há pouco socorrido, e chegar a pensar se, por
acaso, ele também tinha sentido os tais
sinais de um fim se acercando.
No dia seguinte, assim que passei pelo zelador, ele me
disse que o vizinho tinha se sentido mal vendo o jogo do Guga e que ainda bem
que foi socorrido a tempo, pois que foi um baita de um infarto.
– Mas ele tinha sentido alguma coisa estranha durante
o dia, assim, digo, antes de infartar?
– Nada. Num minuto estava bem e no outro infartou. Disseram
que ele estava muito bem vendo o jogo do Guga e depois começou a tremer e a se
curvar pro lado. Ah, essas coisas são assim mesmo, a gente não sente nada até a
máquina parar – disse o zelador, pondo a mão no coração.
Eu fui saindo em direção ao carro e, no caminho, só pensava que ele não entendia nada de jogo eletrizante, angustiante e que ainda
bem que eu tinha sentido todas aquelas coisas desde cedo. Do contrário, insistiria
em ver a partida até o final, não teria mudado de canal e, pum, era eu que tinha
infartado. Bonito!
Só digo a vocês que essa lição eu aprendi: pelo sim,
pelo não, de hoje em diante, quando eu sentir essas dormências
estranhas, sinais de que a minha hora está chegando, jamais vou sentar na
frente da tevê pra assistir a um jogo de tênis. Jamais!
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