sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Iridium

 

Desde criança usando óculos, em muitos momentos da vida eu tive orgulho da minha miopia. Me sentia uma pessoa com um dom singular: o de ler coisas que ninguém conseguia. Seja na etiqueta das roupas, as instruções dos aparelhos eletrônicos, recomendações médicas no canto das bulas, tudo era motivo pra eu ler tudo com um sorriso no rosto, depois de ouvir os elogios efusivos que surgiam, fartos de incredulidade.

 Com cinco anos, ao sentar na carteira da sala de aula e perceber que a professora escrevia com giz invisível, me dei conta de que o problema era dos meus olhos e não do giz ou do quadro negro. Comecei então com 1.75 negativo, conforme gostava de dizer meu pai, que era ótico. Para ele, qualquer que fosse o grau, devia vir acompanhado do seu sinal respectivo, de mais ou de menos, para indicar o tipo de lente, sendo o segundo ligado à miopia.

O meu grau era considerado normal para a oftalmologia, mas não para aquela minha idade. Então, depois de dominar devidamente as letras e os números do quadro da escola, visto que eu já sabia ler bem e até fazia contas de dois algarismos, por estudar em casa com minha tia Iracema, eu passei até a me aventurar nas atividades do recreio, jogando bola, correndo o tempo todo, pulando corda e balançando no galho de uma amendoeira enorme que tinha bem no meio do pátio.

 Me lembro nitidamente que uma vez meu pai chegou com dois amigos. Um deles tinha uma caneta tinteiro, linda, que tinha uma ponta que parecia ser de ouro. Nessa extremidade tinha algo escrito que ninguém conseguia ler, de tão pequeno. Quando meu pai entrou estava justamente dizendo pra eles que eu ia conseguir o que ninguém conseguiu, nem mesmo usando uma lupa, e passou a caneta pra mim. Na mesma hora eu tirei os óculos e fui direto por o foco na caneta.

 – Iridium. Aqui está escrito Iridium.

 Enquanto eles riam e meu pai se orgulhava, eu voltava a botar os óculos e, meio sem jeito, recebia os elogios pelo feito recente.

 Ainda na adolescência, em uma das consultas, o médico alertou que o meu grau ia aumentar conforme eu fosse crescendo. Disse isso recomendando que meus pais me levassem pra fazer exames de vista periódicos, pelo menos anuais, pra ir corrigindo e trocando as lentes, conforme necessário. Assim, eu entrei na adolescência com -5.0 e, por volta dos 30 anos, já batia nos -7.5 graus. Quando meu médico indicou a cirurgia pra colocação de lentes intraoculares eu já estava com -12.0 e a lente de contato quase já não adiantava para o olho esquerdo.

 Assim, há cerca de quatro anos eu troquei aquele alto grau negativo, de lentes grossas e incômodas, por um pequeno grau positivo, de +1,50, só pra conforto nas leituras e pra uso ao computador. Um grau pra perto, que, por um lado, é algo que combina com a minha condição provecta, e por outro é uma incrível proeza da ciência, quando implanta, dentro do olho, uma lente flexível, minúscula, que zera o grau das pessoas. Pura façanha do intelecto científico, há que se dizer.

 E foi justamente dessa façanha que adveio o meu drama de consciência nessa manhã insólita. Um pedal de efeitos para violão chegou pelo correio. Abri o pacote e, depois de verificar o conteúdo, dei de cara com o respectivo manual de uso. Fundo vermelho, texto em preto e letras miúdas, muito miúdas. Os desenhos, ok. E, automaticamente, eu me peguei tirando os óculos de perto pra poder ler o manual, imitando o gesto que eu fazia quando tinha aquela potente miopia de outrora. Naquele tempo era só eu tirar os óculos e pronto, o meu olho era uma lente de aumento natural. E agora, digamos que eu tenha um olho normal.

 É claro que eu prefiro esses novos olhos. Nenhuma dúvida quanto a isso. Mas olhando aquele livrinho, tentando decifrar aquelas linhas, cheias de caracteres indecifráveis, me deu uma certa nostalgia de ter aquela capacidade pra ler os manuais, as bulas e o fundo dos equipamentos eletrônicos, que ninguém conseguia ler.

 Não me queixo um minuto sequer de ter usado óculos a vida toda. Graças ao meu pai.

 Joguei muita bola de óculos. Quebrei muitas lentes. Perdi uma quantidade considerável também, quando tirava por ocasião de um mergulho ou lá o que fosse. Na própria amendoeira da escola, foi lá o primeiro que quebrei. E nas quedas de bicicleta, que foram muitas, quase sempre era mais outro que se ia. Enfim, pura nostalgia.

 E na ponta da caneta estava escrito Iridium.

 

2 comentários:

  1. Irídio deve ser algo muito importante! Quando no ginásio, aprendi que "metro" é a distância entre duas marcas numa barra de platina iridiada (vejam bem, não é uma platina qualquer!), depositada no Conservatório de Ciências de Paris. Agora, imaginem: uma caneta com ponta de irídio? Que coisa mais espetacular, não?

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  2. Só sei que qd meu irmão tirou os óculos foi muito estranho... Quase não o reconheci...

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