quarta-feira, 30 de março de 2022

O Socorro

 

Os meninos do turno da manhã permaneciam na escola, mesmo depois do horário, esperando pela chegada dos alunos da tarde. Quase sempre era assim. Os dois grupos se juntavam e o futebol rolava solto até o recomeço das aulas.

Naquele dia, quando eu cheguei, notei de longe que havia uma rodinha de ouvintes, todos muito atentos ao garoto no centro dela, que contava uma história, rica em detalhes.

Um tio seu, com um amigo, costumava transitar pelas estradas de Minas Gerais. Iam e vinham dos povoados distantes trazendo costuras de todos os tipos, desde toalhas de mesa até camisas e outras peças de roupas, que vendiam para as lojas nos centros comerciais espalhados pela periferia de Belo Horizonte.

O carro voltava dessas viagens sempre abarrotado. Não era um veículo adequado ao transporte de cargas e por isso as sacolas vinham socadas, não só na mala, mas também nos bancos do carro, entre os assentos e em qualquer lugar que coubesse mais mercadoria.

Um dos trechos daquela estrada era conhecido com Rodovia da Morte pelo alto índice de acidentes e por ser uma encosta de morro, sempre possível de ceder com a água das chuvas e levar ainda mais perigo do que somente a velha pista escorregadia, estreita e com muitas curvas. Os caminhões se cruzavam a milímetros um do outro, a ponto de quem estivesse vendo a cena se encolhesse todo, esperando pelo estrondo da batida.

O fato, pois, que o menino contava era que em uma tarde, depois de terem parado pra almoçar, o tio e o amigo vinham pelo citado trajeto até em baixa velocidade, aproveitando o pouco movimento naquele horário. A dupla supunha o carro pesado e também se precavia da chuva fina que insistia em cair há alguns dias na região.

De repente, numa curva, surgiu alguém pedindo socorro na linha do acostamento. Eles logo pararam e identificaram uma mulher que, em desespero, apontava na direção das marcas dos pneus, que se perdiam no sentido do matagal à beira da estrada.

Saíram os dois às pressas do carro e a mulher, em agonia, repetia que a filha ainda estava dentro do veículo, apontando para o mato. O tio então desceu veloz a ribanceira, saltando o matagal e vencendo o terreno irregular, enquanto o amigo seguiu até o posto da polícia rodoviária que ficava logo mais à frente.

Foi só mesmo o tempo de o homem avistar o carro e constatar que o acesso era impossível sem um mínimo de equipamento, uma corda que fosse, pra poder chegar ao veículo que, pelas marcas na vegetação, parecia ter capotado várias vezes ao sair da estrada.

Pela fama que tinha a estrada, logo chegou a viatura da polícia com uma ambulância junto, esta designada para dar plantão no próprio posto rodoviário, em função dos atendimentos emergenciais que ali eram bem comuns. Saíram pelos fundos dela os socorristas com a maca, as cordas, o cinto de ferramentas e todos desceram pela encosta, orientados pelo homem que havia ficado próximo do veículo acidentado.

Quando os paramédicos subiram com a maca, trazendo a menina para a ambulância, um dos policiais veio conversar com os dois comerciantes. Disse que teria de tomar os depoimentos deles, como testemunhas, e vinha com uma bolsa de mulher nas mãos, da qual verificava o conteúdo, alguns objetos, chaves e uma carteira com alguns documentos.

– Boa tarde, senhores. Tudo bem com vocês? A menina deu muita sorte. O cinto salvou a sua vida, evitando que ela fosse arremessada do veículo durante os vários capotamentos. A mãe infelizmente não resistiu. Seu corpo ainda está preso às ferragens e eu já chamei uma outra unidade, com mais técnica, pra providenciar a remoção.

– Que terrível. Qual a idade da menina?

– Por volta de uns cinco, seis anos. A mãe eu não sei, estou olhando os documentos aqui, mas...

Assim que viu o retrato da mulher na carteira de motorista o tio deu um grito.

– Minha Santa Bárbara! Essa aqui é a mãe? Não pode ser. Minha Virgem Maria. Foi essa mulher que estava aqui na beirada, pedindo socorro. Foi ela, foi ela. Me disse que a filha estava no carro acidentado. Santo Cristo.

– Você tem certeza? – tentou o amigo.

– Totalmente. Você não viu a cara dela?

– Eu não reparei muito bem. Estava preocupado em ir chamar o socorro e entrei rápido no carro.

– Era ela. Era ela – repetia o amigo, com as mãos pressionando a lateral do rosto.

– Não pode ser – irrompeu o policial rodoviário. A mulher que está lá, presa nas ferragens, morreu no acidente. Morte instantânea, posso assegurar.

O homem não disse mais nada. Em estado de choque, quando chegou em casa, lívido, teve de ser levado ao posto de saúde e ficou em profundo silêncio por alguns dias.

– Dormindo à base de remédios, sem comer direito, meu tio passava horas olhando para o nada, para um ponto fixo, parecendo que não via nem ouvia nada. Foi só depois de muito tempo que ele voltou aos poucos ao trabalho. Não queria nem mais dirigir e no começo era muito difícil passar perto do local do acidente.

No centro da rodinha o menino finalizava a história dizendo que o policial que fez o boletim e tomou os depoimentos deles na estrada, de vez em quando, ainda liga ou passa pela casa do tio pra saber como ele está. E, tempos depois, sempre que eles vão buscar novas mercadorias no interior, dão um jeito de passar no posto da polícia rodoviária pra cumprimentar o amigo policial.

 

Apesar de eu não conhecer direito o tal menino, o contador de histórias, eu me lembro da fisionomia dele até hoje. Umas semanas depois daquele dia eu soube que ele mudou de colégio e fiquei pensando na possibilidade de ele contar a história do seu tio para um novo grupinho, em uma nova e atenta rodinha de escolares adolescentes. Talvez aguardando enquanto o futebol não começa.

 

 


segunda-feira, 21 de março de 2022

O Jogo da Imitação

 

De repente deu-se o furdunço. Uma correria danada na rua, todo mundo olhando pra trás e eu sem entender nada. A partir daquele aviso surdo, como um código secreto, percebi que cada qual sabia exatamente o que fazer, pra onde ir, o que proteger e como.

A ingenuidade da maioria, porém, só pôde dar passagem a algum entendimento mínimo quando foi vista surgindo na esquina a tropa da guarda municipal, junto com os fiscais da prefeitura. Na minha terra isso tem o nome de rapa, uma polícia cuja função é recolher – rapar – as mercadorias sem nota fiscal de posse dos ambulantes não licenciados.

Em poucos minutos já não tinha mais ninguém vendendo nada. As mercadorias, antes cuidadosamente expostas no chão, já tinham desaparecido por completo, junto com seus donos, enfiadas às pressas em enormes sacolas de alças, que iam quase do chão até os ombros, laçadas pelo pescoço.

No meio da rua de pedestres, porém, além da tropa que se aproximava em formação e dos curiosos que já davam espaço para o cortejo passar, desvenda-se de súbito um corpo caído no canto, perto da entrada de uma loja. Para espanto de todos a surpresa daquele decúbito, de imediato, trouxe angústia e medo, sendo o motivo maior da suspensão da operação que se iniciava.

O chefe da comitiva e também a emérita autoridade policial – eles adoram ser chamados de autoridade – acorreram em meio à multidão e furaram o já formado círculo de curiosos, na intenção de prestar socorro à vítima: uma senhora idosa.

Enquanto alguém da equipe fardada chamava uma ambulância pelo rádio, os transeuntes trocavam suas impressões sobre a ocorrência. Uma moça disse que viu quando a senhora foi atingida por um ambulante. Um esbarrão forte e surpreendente. Outro rapaz disse que também viu o momento exato do choque, mas que foi a enorme bolsa de mercadoria que teria atingido a mulher, levando-a ao chão. A cadeirante, por sua vez, que vendia meias e que tinha licença para atuar naquela área no Centro, confirmou o modo como tudo se deu, mas acrescentou que, na queda, a idosa havia batido com a cabeça na quina da parede da loja e por isso se encontrava desmaiada.

Eu nem tinha notado o desmaio. Mas assim que os chefes a pegaram pelo braço, sustentando o pescoço instável, a sensação era mesmo de perda dos sentidos, embora ninguém soubesse ainda a real gravidade daquela pancada.

Felizmente, em poucos minutos ela já recobrava os sentidos e a cor, se mostrando ainda meio zonza diante de tantos olhos estranhos. Quando ia tentar se levantar todos a impediram, dizendo que era prudente esperar pela ambulância, de modo que os paramédicos a examinassem e afastassem qualquer possibilidade de problema maior.

Então, nessa espera, as pessoas em redor foram tentando puxar conversa com ela, buscando amenizar a situação na intenção de acalmá-la, pois pelas suas primeiras respostas, um tanto confusas, a impressão era de que ela ainda não estava bem. Não plenamente.

– Acho que ela podia estar indo encontrar alguém. Um parente talvez – sugeriu um senhor.

– Pode ser que ela estivesse indo comprar um tecido pra fazer um vestido de aniversário para a filha – sussurrou outro.

– Quem sabe estava voltando da casa de uma amiga, aqui no Centro e ia encontrar com o marido na hora do almoço.

– Ouviu? Ela acabou de dizer pro soldado que o nome dela é Conceição. Deve estar melhorando já – festejou uma estudante agarrada à sua mochila vermelha.

– Pois pra mim a dona Conceição ia só comprar um peixe do Mercado Público. Vai ver ela deve até conhecer os peixeiros de lá e ser amiga de alguns – disse outro rapaz com empolgação.

No meio de todas aquelas suposições, aqui lembradas somente algumas, talvez as mais criativas e originais, chegou finalmente a ambulância. Parou na esquina, desligou as luzes e logo saíram os seus ocupantes, apressados como de praxe. Puseram a senhora sentada, mediram a pressão, fizeram-na esticar os braços, os ombros, as pernas, pediram pra olhar para a ponta de uma caneta que se movia à sua frente e depois voltaram a lhe dar água, coisa que todos ali já tinham oferecido à exaustão – coitada da pobre mulher ferida, pois que só lhe dão água.

A curiosidade sobre o seu nome, que já tinha sido vencida minutos atrás, não fazia frente à grande necessidade que todos em volta nutriam por saber quem era ela e o que estava fazendo no Centro da cidade, quando sofreu o inusitado abalroamento do ambulante em fuga.

O fato é que cada um imaginou uma situação diferente, uma história diversa sobre a senhora, e agora estavam todos ali só esperando por esta última cena, uma vez que os paramédicos já haviam tranquilizado a todos sobre a não gravidade da queda, mesmo que plasticamente preocupante, como disseram as testemunhas oculares.

Enfim, forma-se na rua, tacitamente, quase que um balcão de teatro, onde a plateia se debruça atenta para conhecer a verdade da dona Conceição, seu destino e sua história.

Refeita da pequena tontura, recobrando as coordenadas de sua localização, a rua em que estava e o sentido a tomar para seguir o seu caminho, dona Conceição finalmente se pronunciou.

– Eu vim ao Centro receber a minha aposentadoria. Mas quando cheguei no banco, a mocinha me disse que só amanhã. O dia certo é amanhã mesmo. Eu que me confundi e vim hoje. Aí, como eu não pude sacar nada, estava indo ali no trabalho da minha amiga e vizinha, pra pegar um dinheiro emprestado com ela pra poder voltar pra minha casa. Amanhã eu arranjo outro dinheirinho pra passagem e volto aqui no banco pra receber o meu salário.

Aquelas palavras, ditas com tal simplicidade, deram um baque em todo mundo. Um soco no estômago.

A penúria desses nossos tempos é algo de muito triste. Corta a gente de repente. Na cara de cada um de nós, ali em volta, só havia pesar. Um pesar coletivo. Profundo. Por todas as Conceições, todas as Marias, irmãs, mães, as avós e chefes de família. Na superficialidade da nossa busca por entender, muitas vezes somos somente uma imitação de sociedade. Distante e alienada.

A realidade da nossa gente é bem mais cruel do que nossas vãs tentativas de perceber a miséria à nossa volta, a exclusão e o desamparo humanos. A desesperança, por falta de opção, acaba por se refazer. Depois, se recompõe e torna-se de novo esperança. Como na voz de dona Conceição, quando evoca o dia de amanhã, a determinação de voltar, e sempre tentar mais uma vez.

Quando a cena se desfez e a senhora foi indo embora, esquina abaixo, um silêncio devastador tomou conta da rua.

 

 

O matemático britânico Alan Turing, durante a Segunda Guerra Mundial, criou o que seria o primeiro computador para decifrar a máquina alemã Enigma.

O Enigma era um sistema criptográfico usado pelas forças nazistas para transmitir mensagens, através de códigos, a seus homens no campo de batalha.

Turing quebrou esse código.

Em seu trabalho mais famoso ele propõe a criação de um teste hipotético para analisar se um sistema computacional pode ser inteligente como um ser humano.

Desde então, enquanto buscamos criar máquinas que imitem o homem, temos é criado pessoas que imitam máquinas.