Os meninos do turno da
manhã permaneciam na escola, mesmo depois do horário, esperando pela chegada dos
alunos da tarde. Quase sempre era assim. Os dois grupos se juntavam e o futebol
rolava solto até o recomeço das aulas.
Naquele dia,
quando eu cheguei, notei de longe que havia uma rodinha de ouvintes, todos muito
atentos ao garoto no centro dela, que contava uma história, rica em detalhes.
Um tio seu,
com um amigo, costumava transitar pelas estradas de Minas Gerais. Iam e vinham
dos povoados distantes trazendo costuras de todos os tipos, desde toalhas de
mesa até camisas e outras peças de roupas, que vendiam para as lojas nos
centros comerciais espalhados pela periferia de Belo Horizonte.
O carro
voltava dessas viagens sempre abarrotado. Não era um veículo adequado ao
transporte de cargas e por isso as sacolas vinham socadas, não só na mala, mas
também nos bancos do carro, entre os assentos e em qualquer lugar que coubesse
mais mercadoria.
Um dos trechos
daquela estrada era conhecido com Rodovia da Morte pelo alto índice de
acidentes e por ser uma encosta de morro, sempre possível de ceder com a água
das chuvas e levar ainda mais perigo do que somente a velha pista escorregadia,
estreita e com muitas curvas. Os caminhões se cruzavam a milímetros um do outro,
a ponto de quem estivesse vendo a cena se encolhesse todo, esperando pelo
estrondo da batida.
O fato, pois, que
o menino contava era que em uma tarde, depois de terem parado pra almoçar, o
tio e o amigo vinham pelo citado trajeto até em baixa velocidade, aproveitando
o pouco movimento naquele horário. A dupla supunha o carro pesado e também se precavia
da chuva fina que insistia em cair há alguns dias na região.
De repente,
numa curva, surgiu alguém pedindo socorro na linha do acostamento. Eles logo
pararam e identificaram uma mulher que, em desespero, apontava na direção das
marcas dos pneus, que se perdiam no sentido do matagal à beira da estrada.
Saíram os dois
às pressas do carro e a mulher, em agonia, repetia que a filha ainda estava
dentro do veículo, apontando para o mato. O tio então desceu veloz a
ribanceira, saltando o matagal e vencendo o terreno irregular, enquanto o amigo
seguiu até o posto da polícia rodoviária que ficava logo mais à frente.
Foi só mesmo o
tempo de o homem avistar o carro e constatar que o acesso era impossível sem um
mínimo de equipamento, uma corda que fosse, pra poder chegar ao veículo que,
pelas marcas na vegetação, parecia ter capotado várias vezes ao sair da
estrada.
Pela fama que
tinha a estrada, logo chegou a viatura da polícia com uma ambulância junto,
esta designada para dar plantão no próprio posto rodoviário, em função dos
atendimentos emergenciais que ali eram bem comuns. Saíram pelos fundos dela os
socorristas com a maca, as cordas, o cinto de ferramentas e todos desceram pela
encosta, orientados pelo homem que havia ficado próximo do veículo acidentado.
Quando os
paramédicos subiram com a maca, trazendo a menina para a ambulância, um dos
policiais veio conversar com os dois comerciantes. Disse que teria de tomar os
depoimentos deles, como testemunhas, e vinha com uma bolsa de mulher nas mãos,
da qual verificava o conteúdo, alguns objetos, chaves e uma carteira com alguns
documentos.
– Boa tarde,
senhores. Tudo bem com vocês? A menina deu muita sorte. O cinto salvou a sua
vida, evitando que ela fosse arremessada do veículo durante os vários capotamentos.
A mãe infelizmente não resistiu. Seu corpo ainda está preso às ferragens e eu
já chamei uma outra unidade, com mais técnica, pra providenciar a remoção.
– Que
terrível. Qual a idade da menina?
– Por volta de
uns cinco, seis anos. A mãe eu não sei, estou olhando os documentos aqui,
mas...
Assim que viu
o retrato da mulher na carteira de motorista o tio deu um grito.
– Minha Santa
Bárbara! Essa aqui é a mãe? Não pode ser. Minha Virgem Maria. Foi essa mulher
que estava aqui na beirada, pedindo socorro. Foi ela, foi ela. Me disse que a
filha estava no carro acidentado. Santo Cristo.
– Você tem
certeza? – tentou o amigo.
– Totalmente.
Você não viu a cara dela?
– Eu não
reparei muito bem. Estava preocupado em ir chamar o socorro e entrei rápido no
carro.
– Era ela. Era
ela – repetia o amigo, com as mãos pressionando a lateral do rosto.
– Não pode ser
– irrompeu o policial rodoviário. A mulher que está lá, presa nas ferragens,
morreu no acidente. Morte instantânea, posso assegurar.
O homem não
disse mais nada. Em estado de choque, quando chegou em casa, lívido, teve de
ser levado ao posto de saúde e ficou em profundo silêncio por alguns dias.
– Dormindo à
base de remédios, sem comer direito, meu tio passava horas olhando para o nada,
para um ponto fixo, parecendo que não via nem ouvia nada. Foi só depois de
muito tempo que ele voltou aos poucos ao trabalho. Não queria nem mais dirigir
e no começo era muito difícil passar perto do local do acidente.
No centro da
rodinha o menino finalizava a história dizendo que o policial que fez o boletim
e tomou os depoimentos deles na estrada, de vez em quando, ainda liga ou passa
pela casa do tio pra saber como ele está. E, tempos depois, sempre que eles vão
buscar novas mercadorias no interior, dão um jeito de passar no posto da
polícia rodoviária pra cumprimentar o amigo policial.
Apesar de eu não
conhecer direito o tal menino, o contador de histórias, eu me lembro da
fisionomia dele até hoje. Umas semanas depois daquele dia eu soube que ele
mudou de colégio e fiquei pensando na possibilidade de ele contar a história do
seu tio para um novo grupinho, em uma nova e atenta rodinha de escolares
adolescentes. Talvez aguardando enquanto o futebol não começa.
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