De repente
deu-se o furdunço. Uma correria danada na rua, todo mundo olhando pra trás e eu
sem entender nada. A partir daquele aviso surdo, como um código secreto, percebi
que cada qual sabia exatamente o que fazer, pra onde ir, o que proteger e como.
A ingenuidade
da maioria, porém, só pôde dar passagem a algum entendimento mínimo quando foi
vista surgindo na esquina a tropa da guarda municipal, junto com os fiscais da
prefeitura. Na minha terra isso tem o nome de rapa, uma polícia cuja função é recolher – rapar – as mercadorias sem nota fiscal de posse dos ambulantes não
licenciados.
Em poucos
minutos já não tinha mais ninguém vendendo nada. As mercadorias, antes
cuidadosamente expostas no chão, já tinham desaparecido por completo, junto com
seus donos, enfiadas às pressas em enormes sacolas de alças, que iam quase do
chão até os ombros, laçadas pelo pescoço.
No meio da rua
de pedestres, porém, além da tropa que se aproximava em formação e dos curiosos
que já davam espaço para o cortejo passar, desvenda-se de súbito um corpo caído
no canto, perto da entrada de uma loja. Para espanto de todos a surpresa
daquele decúbito, de imediato, trouxe angústia e medo, sendo o motivo maior da
suspensão da operação que se iniciava.
O chefe da
comitiva e também a emérita autoridade policial – eles adoram ser chamados de
autoridade – acorreram em meio à multidão e furaram o já formado círculo de curiosos,
na intenção de prestar socorro à vítima: uma senhora idosa.
Enquanto
alguém da equipe fardada chamava uma ambulância pelo rádio, os transeuntes
trocavam suas impressões sobre a ocorrência. Uma moça disse que viu quando a
senhora foi atingida por um ambulante. Um esbarrão forte e surpreendente. Outro
rapaz disse que também viu o momento exato do choque, mas que foi a enorme bolsa
de mercadoria que teria atingido a mulher, levando-a ao chão. A cadeirante, por
sua vez, que vendia meias e que tinha licença para atuar naquela área no
Centro, confirmou o modo como tudo se deu, mas acrescentou que, na queda, a idosa havia batido com a cabeça na quina da parede da loja e por isso se
encontrava desmaiada.
Eu nem tinha
notado o desmaio. Mas assim que os chefes a pegaram pelo braço, sustentando o pescoço
instável, a sensação era mesmo de perda dos sentidos, embora ninguém soubesse ainda a real gravidade daquela pancada.
Felizmente, em
poucos minutos ela já recobrava os sentidos e a cor, se mostrando ainda meio
zonza diante de tantos olhos estranhos. Quando ia tentar se levantar todos a
impediram, dizendo que era prudente esperar pela ambulância, de modo que os
paramédicos a examinassem e afastassem qualquer possibilidade de problema
maior.
Então, nessa
espera, as pessoas em redor foram tentando puxar conversa com ela, buscando amenizar
a situação na intenção de acalmá-la, pois pelas suas primeiras respostas, um
tanto confusas, a impressão era de que ela ainda não estava bem. Não plenamente.
– Acho que ela
podia estar indo encontrar alguém. Um parente talvez – sugeriu um senhor.
– Pode ser que
ela estivesse indo comprar um tecido pra fazer um vestido de aniversário para a
filha – sussurrou outro.
– Quem sabe
estava voltando da casa de uma amiga, aqui no Centro e ia encontrar com o
marido na hora do almoço.
– Ouviu? Ela
acabou de dizer pro soldado que o nome dela é Conceição. Deve estar melhorando
já – festejou uma estudante agarrada à sua mochila vermelha.
– Pois pra mim a
dona Conceição ia só comprar um peixe do Mercado Público. Vai ver ela deve até
conhecer os peixeiros de lá e ser amiga de alguns – disse outro rapaz com
empolgação.
No meio de
todas aquelas suposições, aqui lembradas somente algumas, talvez as mais
criativas e originais, chegou finalmente a ambulância. Parou na esquina,
desligou as luzes e logo saíram os seus ocupantes, apressados como de praxe.
Puseram a senhora sentada, mediram a pressão, fizeram-na esticar os braços, os
ombros, as pernas, pediram pra olhar para a ponta de uma caneta que se movia à
sua frente e depois voltaram a lhe dar água, coisa que todos ali já tinham oferecido
à exaustão – coitada da pobre mulher ferida, pois que só lhe dão água.
A curiosidade
sobre o seu nome, que já tinha sido vencida minutos atrás, não fazia frente à
grande necessidade que todos em volta nutriam por saber quem era ela e o que
estava fazendo no Centro da cidade, quando sofreu o inusitado abalroamento do
ambulante em fuga.
O fato é que cada um
imaginou uma situação diferente, uma história diversa sobre a senhora, e agora estavam todos
ali só esperando por esta última cena, uma vez que os paramédicos já haviam
tranquilizado a todos sobre a não gravidade da queda, mesmo que plasticamente
preocupante, como disseram as testemunhas oculares.
Enfim, forma-se
na rua, tacitamente, quase que um balcão de teatro, onde a plateia se debruça
atenta para conhecer a verdade da dona Conceição, seu destino e sua história.
Refeita da
pequena tontura, recobrando as coordenadas de sua localização, a rua em que estava
e o sentido a tomar para seguir o seu caminho, dona Conceição finalmente se
pronunciou.
– Eu vim ao
Centro receber a minha aposentadoria. Mas quando cheguei no banco, a mocinha me
disse que só amanhã. O dia certo é amanhã mesmo. Eu que me confundi e vim hoje.
Aí, como eu não pude sacar nada, estava indo ali no trabalho da minha amiga e
vizinha, pra pegar um dinheiro emprestado com ela pra poder voltar pra minha
casa. Amanhã eu arranjo outro dinheirinho pra passagem e volto aqui no banco
pra receber o meu salário.
Aquelas
palavras, ditas com tal simplicidade, deram um baque em todo mundo. Um soco no
estômago.
A penúria
desses nossos tempos é algo de muito triste. Corta a gente de repente.
Na cara de cada um de nós, ali em volta, só havia pesar. Um pesar coletivo. Profundo.
Por todas as Conceições, todas as Marias, irmãs, mães, as avós e chefes de família. Na
superficialidade da nossa busca por entender, muitas vezes somos somente uma
imitação de sociedade. Distante e alienada.
A realidade da
nossa gente é bem mais cruel do que nossas vãs tentativas de perceber a miséria
à nossa volta, a exclusão e o desamparo humanos. A desesperança, por falta de opção, acaba por se refazer. Depois, se recompõe e torna-se de novo esperança. Como na voz de dona Conceição, quando evoca o dia de amanhã, a
determinação de voltar, e sempre tentar mais uma vez.
Quando a cena se desfez e a senhora foi indo embora, esquina abaixo, um silêncio devastador tomou conta da rua.
O matemático britânico
Alan Turing, durante a Segunda Guerra Mundial, criou o que seria o primeiro
computador para decifrar a máquina alemã Enigma.
O Enigma era
um sistema criptográfico usado pelas forças nazistas para transmitir mensagens,
através de códigos, a seus homens no campo de batalha.
Turing quebrou
esse código.
Em seu
trabalho mais famoso ele propõe a criação de um teste hipotético para analisar
se um sistema computacional pode ser inteligente como um ser humano.
Desde então, enquanto
buscamos criar máquinas que imitem o homem, temos é criado pessoas que imitam máquinas.
a luta de cada um, uma guerra particular!
ResponderExcluirA sensibilidade perante um mundo que não é inventado. Emocionante o texto Anderson, obrigada.
ResponderExcluirMuito me honra ter você como leitora. A emoção é minha. Beijo, Elaine.
ExcluirMuito bom! Excelente conclusão...
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