sábado, 30 de abril de 2022

Os Grisalhos

  

Primeiro Ato:

Na fila do terminal do Centro está um jovem de meia idade esperando pela chegada do seu ônibus. Seu nome é Yakov e ele é fã de escritores russos. À sua frente, alguns estudantes saídos do colégio conversam animados, enquanto vasculham a esmo suas mochilas, em busca não se sabe de quê.

Pelo reflexo do vidro em frente Yakov passa a mão pelos cabelos grisalhos e até se vira de lado, de modo a poder melhor apreciar o tom cinza que eles apresentam e que ele estima. Ao final, acaba por concluir que, de uma maneira ou outra, a tendência é que, mais cedo ou mais tarde, os tais fiquem irremediavelmente brancos. Pensa também que o momento deles, precoce e naturalmente tingidos como se encontram, denota no reflexo um homem sério, austero e com um certo ar de sabedoria, o que ele realmente tem de sobra.

No instante em que ele dava a última olhada pros cabelos, se perguntando com que idade finalmente eles ficariam completamente alvos, o seu ônibus estacionava na vaga correspondente.

Dali a alguns minutos os passageiros começaram a subir no veículo. Foi quando uma das meninas estudantes, pouco mais à frente, no momento de embarcar, se virou pra ele, olhou os seus cabelos grisalhos – e ainda a máscara cirúrgica, comum dos nossos tempos – e sem pestanejar, cedeu a passagem e a vez para que Yakov entrasse na sua frente.

Um gesto repentino, sem dúvida, mas também abundoso em educação e respeito pelos idosos. Sobre isso, ele mesmo contou da sua reação e surpresa, sublinhando que, na dúvida entre dizer a sua verdadeira idade, o que certamente provocaria uma atitude diversa da estudante, preferiu aceitar a deferência e, resignado, foi se acomodar em um dos assentos laterais.

– Ela me considerou um velhinho – teria relatado mais tarde o jovem Yakov.

E quando um amigo perguntou porque aceitou, ele respondeu.

– Foi tudo muito rápido. A fila toda estava subindo atrás da gente e eu, bem, eu não me fiz de rogado.

Não se sabe qual vai ser a reação do Yakov depois desse episódio. O quanto esse fato vai influenciar na sua decisão de manter os cabelos grisalhos ainda é uma incógnita. E se outras meninas também passarem a ceder os seus lugares? O que passará dentro do seu jovem coraçãozinho é um mistério.

Enfim, o futuro dirá!

 

Segundo Ato:

Assim que José acabou de estacionar o carro notou uma mulher se aproximando. Vinha um tanto aflita, gesticulando e apontando para a placa logo à frente, dificultando o entendimento do real motivo da sua aflição.

A loja em pauta era uma revendedora de equipamentos ortopédicos e geriátricos, muito diversificada e também muito grande e conhecida na cidade. Seu José então, que é fã de escritores portugueses, foi percebendo que a mulher era a dona do carro que estava ao lado do seu e que dentro dele havia uma senhorinha, bem velhinha, que observava tudo o que ocorria do lado de fora.

Com o barulho do trânsito na rua José fez um sinal para que a mulher se aproximasse, o que minimamente ia possibilitar que um pudesse ouvir o outro. Ela então foi novamente até o seu carro, falou alguma coisa com a senhorinha e veio até ele:

– É que eu estou com a minha mãe ali no carro e a gente veio buscar uma cadeira de rodas nessa loja aqui. E a gente queria estacionar exatamente nessa vaga que o senhor está.

– Ok. Mas tem ali uma outra vaga disponível. A senhora viu? – disse apontando.

– Eu vi sim. Mas acho isso um absurdo, porque essa vaga aqui é pra idoso. Está ali a plaquinha, mas as pessoas não respeitam. Então, delicadamente, eu vim falar com o senhor.

– Mas eu sou idoso. Por isso que estacionei aqui. Eu até posso lhe ceder a vaga, mas...

– Como o senhor é idoso?

– Sim, sou sim. Vou pegar o meu documento de permissão pra lhe mostrar.

Logo que viu o cartão da prefeitura a mulher ficou toda sem jeito:

– Me desculpa. Eu fico até envergonhada. Mas olha, o senhor não parece idoso. De jeito nenhum. Nem o cabelo grisalho o senhor tem! Parece muito mais jovem do que a lei exige pra essa vaga.

– Vamos fazer o seguinte – disse o agora jovem José. – A senhora dá uma ré aqui desse lado, eu saio com o meu carro e vou mudar pra aquela vaga ali da ponta. E deixo essa aqui livre pra senhora. Tá certo assim?

– Ah, eu aceito sim. Muito, muito obrigada. A gente sempre fica nessa vaga aqui. Ela é bem mais espaçosa e mais fácil de manobrar do que as outras. Agradeço a sua sensibilidade.

Elogiado por duas vezes, pela pouca aparência de idoso e por ser um homem sensível, José estava feliz da vida, enquanto cuidava de transferir o carro para a outra vaga.

Quando ele terminou a tarefa e finalmente entrou na loja, todos os clientes, velhinhos e velhinhas, todos de cabelos grisalhos, estavam sorrindo na sua direção, quase que a ponto de aplaudi-lo. Provavelmente foram incentivados pela história do estacionamento que a mulher tinha acabado de contar.

Ele agradeceu os cumprimentos com um leve aceno de cabeça e seguiu em direção ao balcão do fundo da loja.

Mais tarde, quando já finalizava as compras, a moça do caixa, no momento de entregar as notas fiscais ao seu José, esticou-se toda pra dividir com ele uma singela confidência:

– Mas o senhor pinta o cabelo, né? Com essa barba toda branquinha assim, não pode ter o cabelo preto, de jeito nenhum. Eu sei porque o meu pai também pintava. Mas eu entendo. Com certeza. E não tem problema algum nisso. Uma boa tarde e volte sempre, viu?

 

PS – O senhor José informa que, por enquanto, não pinta o cabelo.

Enfim, o futuro dirá!



quarta-feira, 13 de abril de 2022

O Suspeito

 

Quase todo final de ano, com exceção daqueles proibidos pela pandemia, a mesma programação de viagem ao Rio acaba se confirmando. Mais cedo ou mais tarde, vai chegando final de novembro e a gente decide que rever os amigos e a família é algo inegociável e, aí, marca as passagens.

Naquele ano minha esposa estava fazendo um programa de alimentação balanceada e muito da sua comida era preparada mesmo em casa. No geral, a regra do tal programa era que alguns produtos deviam ser reduzidos e outros evitados ou preparados de uma forma específica. Isso acabava fazendo com que ela levasse sempre um potinho ou outro, contendo a sua comidinha especial, para qualquer lugar que fosse.

Quando entramos na sala de embarque, naquele ano, eu tive a impressão que uma das guardas do setor de inspeção de bagagens, que conversava com outra colega perto das esteiras, havia apontado na minha direção assim que me viu. Eu estranhei um pouco o fato, mas logo achei que era algo normal, pois, em geral, para os seguranças dos aeroportos, todos são suspeitos. Inclusive eu, ué!

Enquanto a fila andava e a gente se aproximava do raio X a tal guarda ia acompanhando o nosso movimento. Não sei se por acaso ou premeditação, o fato é que quando a gente chegou na esteira para inspeção das bagagens ela estava justamente posicionada no mesmo guichê de atendimento. Ficou ali de pé, ao lado da atendente principal posicionada à frente da tela, esperando pela passagem das nossas bolsas, aliás, uma bolsa e uma mochila, esta última já fora no meu ombro, pronta pra ser depositada na mesa, junto com as coisas de metal que eles sempre pedem pra gente tirar.

Eu estava bem tranquilo. Tirei o relógio, o celular do bolso, os óculos e então informei que tinha um tablet na parte de trás da mochila, ao que elas responderam com um simples Ok.

A mochila passou. Mas alguém fez um sinal invisível e um guarda tornou a trazê-la de volta ao túnel do raio X. As duas mulheres então esticaram o pescoço pra chegar mais perto da tela, enquanto uma delas apontava pra imagem, balançando a cabeça.

– Senhor, o que é isso na sua mochila.

– Um tablet, conforme eu informei ainda agora.

– Não. Tem uma coisa aqui. O senhor está levando uma faca na sua mochila? É isso?

Eu dei até uma risadinha nervosa, mas respondi com calma:

– Claro que não. Eu sei que não pode embarcar com nada desse tipo. Imagina. Uma faca!

– Mas é uma faca.

– Não é não. Pode ver direito. É algum outro objeto. Mas faca, jamais.

No mesmo momento que minha esposa se aproximava pra ver o que estava acontecendo, já tendo sido liberada, ela e sua bolsa, a guarda tirou da minha mochila não só uma faca, mas também um garfo, envoltos num envelopinho plástico que eu reconheci como sendo da minha própria casa. Ela tirou os dois, me mostrou e eu fiquei sem palavras.

– Ah, isso? Eu já tinha até me esquecido – disse minha mulher. Esses talheres são meus. É que eu estou fazendo uma dieta e eu mesmo levo a minha comida. Tem uns potinhos aí dentro, pode ver. Eu nem tinha me dado conta de que não podia levar no voo. Tudo bem, pode descartar. Me desculpe.

Se a guarda já havia me carimbando como suspeito desde a minha entrada na fila, agora com uma faca sendo retirada da minha mochila, ela teve certeza de que o seu olho clínico de guarda estava mesmo apurado. E por mais que eu explicasse o já explicado pela própria pessoa que botou a faca – e o garfo – dentro da mochila, o suspeito definitivamente era eu.

Não tinha como eu argumentar. Era um caso perdido.

Enquanto a gente esperava a hora do voo, já na sala de embarque, a tal guarda passou pelo saguão por duas vezes. Sempre me olhando, parecia tentar descobrir o que mais eu escondia e quais eram os meus verdadeiros planos para aquela viagem.

Esses apuros que acontecem com a gente e que nos deixam em suspense por um certo tempo, assim que se extinguem em toda a aflição causada, passam a ser engraçados e a gente começa a lembrar e a rir. Ainda bem.

Foi assim que, numa dessas vezes em que a autoridade-guarda-feminina me filmou com os seus olhos de raio X no saguão do aeroporto, eu disse baixinho pra minha esposa, puxando um trejeito de filme policial:

– Olha Bonnie, da próxima vez que você quiser sequestrar um avião, pelo menos me avisa, tá? Que aí eu escondo melhor as facas e as armas e não fico com cara de tacho na frente da polícia.

Ela disse um “o quê?” espantado, depois percebeu que eu já estava rindo e assentiu com um “Ok, Clyde, pode deixar” e deu uma risada também.