Primeiro Ato:
Na fila do
terminal do Centro está um jovem de meia idade esperando pela chegada do seu
ônibus. Seu nome é Yakov e ele é fã de escritores russos. À sua frente, alguns
estudantes saídos do colégio conversam animados, enquanto vasculham a esmo suas
mochilas, em busca não se sabe de quê.
Pelo reflexo
do vidro em frente Yakov passa a mão pelos cabelos grisalhos e até se vira de
lado, de modo a poder melhor apreciar o tom cinza que eles apresentam e que ele
estima. Ao final, acaba por concluir que, de uma maneira ou outra, a tendência
é que, mais cedo ou mais tarde, os tais fiquem irremediavelmente brancos. Pensa
também que o momento deles, precoce e naturalmente tingidos como se encontram,
denota no reflexo um homem sério, austero e com um certo ar de sabedoria, o que
ele realmente tem de sobra.
No instante em
que ele dava a última olhada pros cabelos, se perguntando com que idade
finalmente eles ficariam completamente alvos, o seu ônibus estacionava na vaga
correspondente.
Dali a alguns
minutos os passageiros começaram a subir no veículo. Foi quando uma das meninas
estudantes, pouco mais à frente, no momento de embarcar, se virou pra ele,
olhou os seus cabelos grisalhos – e ainda a máscara cirúrgica, comum dos nossos
tempos – e sem pestanejar, cedeu a passagem e a vez para que Yakov entrasse na
sua frente.
Um gesto repentino,
sem dúvida, mas também abundoso em educação e respeito pelos idosos. Sobre isso,
ele mesmo contou da sua reação e surpresa, sublinhando que, na dúvida entre
dizer a sua verdadeira idade, o que certamente provocaria uma atitude diversa
da estudante, preferiu aceitar a deferência e, resignado, foi se acomodar em um
dos assentos laterais.
– Ela me
considerou um velhinho – teria relatado mais tarde o jovem Yakov.
E quando um
amigo perguntou porque aceitou, ele respondeu.
– Foi tudo
muito rápido. A fila toda estava subindo atrás da gente e eu, bem, eu não me
fiz de rogado.
Não se sabe qual vai ser a reação do Yakov depois desse episódio. O quanto esse fato vai influenciar na sua decisão de manter os cabelos grisalhos ainda é uma incógnita. E se outras meninas também passarem a ceder os seus lugares? O que passará dentro do seu jovem coraçãozinho é um mistério.
Enfim, o futuro dirá!
Segundo Ato:
Assim que José
acabou de estacionar o carro notou uma mulher se aproximando. Vinha um tanto
aflita, gesticulando e apontando para a placa logo à frente, dificultando o
entendimento do real motivo da sua aflição.
A loja em
pauta era uma revendedora de equipamentos ortopédicos e geriátricos, muito diversificada
e também muito grande e conhecida na cidade. Seu José então, que é fã de
escritores portugueses, foi percebendo que a mulher era a dona do carro que
estava ao lado do seu e que dentro dele havia uma senhorinha, bem velhinha, que
observava tudo o que ocorria do lado de fora.
Com o barulho
do trânsito na rua José fez um sinal para que a mulher se aproximasse, o que
minimamente ia possibilitar que um pudesse ouvir o outro. Ela então foi novamente
até o seu carro, falou alguma coisa com a senhorinha e veio até ele:
– É que eu
estou com a minha mãe ali no carro e a gente veio buscar uma cadeira de rodas nessa
loja aqui. E a gente queria estacionar exatamente nessa vaga que o senhor está.
– Ok. Mas tem
ali uma outra vaga disponível. A senhora viu? – disse apontando.
– Eu vi sim.
Mas acho isso um absurdo, porque essa vaga aqui é pra idoso. Está ali a
plaquinha, mas as pessoas não respeitam. Então, delicadamente, eu vim falar com
o senhor.
– Mas eu sou
idoso. Por isso que estacionei aqui. Eu até posso lhe ceder a vaga, mas...
– Como o
senhor é idoso?
– Sim, sou
sim. Vou pegar o meu documento de permissão pra lhe mostrar.
Logo que viu o
cartão da prefeitura a mulher ficou toda sem jeito:
– Me desculpa.
Eu fico até envergonhada. Mas olha, o senhor não parece idoso. De jeito nenhum.
Nem o cabelo grisalho o senhor tem! Parece muito mais jovem do que a lei exige pra
essa vaga.
– Vamos fazer
o seguinte – disse o agora jovem José. – A senhora dá uma ré aqui desse lado,
eu saio com o meu carro e vou mudar pra aquela vaga ali da ponta. E deixo essa
aqui livre pra senhora. Tá certo assim?
– Ah, eu
aceito sim. Muito, muito obrigada. A gente sempre fica nessa vaga aqui. Ela é
bem mais espaçosa e mais fácil de manobrar do que as outras. Agradeço a sua
sensibilidade.
Elogiado por
duas vezes, pela pouca aparência de idoso e por ser um homem sensível, José
estava feliz da vida, enquanto cuidava de transferir o carro para a outra vaga.
Quando ele
terminou a tarefa e finalmente entrou na loja, todos os clientes, velhinhos e
velhinhas, todos de cabelos grisalhos, estavam sorrindo na sua direção, quase
que a ponto de aplaudi-lo. Provavelmente foram incentivados pela história do
estacionamento que a mulher tinha acabado de contar.
Ele agradeceu
os cumprimentos com um leve aceno de cabeça e seguiu em direção ao balcão do
fundo da loja.
Mais tarde,
quando já finalizava as compras, a moça do caixa, no momento de entregar as notas
fiscais ao seu José, esticou-se toda pra dividir com ele uma singela confidência:
– Mas o senhor
pinta o cabelo, né? Com essa barba toda branquinha assim, não pode ter o cabelo
preto, de jeito nenhum. Eu sei porque o meu pai também pintava. Mas eu entendo.
Com certeza. E não tem problema algum nisso. Uma boa tarde e volte sempre, viu?
PS – O senhor José informa que, por enquanto, não pinta o cabelo.
Enfim, o futuro dirá!
Gostei muito, Anderson. Ah! as aparências. As minhas amigas umas ficavam furiosas quando alguém cedia o lugar. Outras pediam o lugar, felizes da vida por ter esse direito reconhecido. C'est la vie...
ResponderExcluirOi Anderson, saiu como anônimo pois a meia analfabeta digital, não soube como se identificar, o faço agora. Malu. Um abraço
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