quarta-feira, 13 de julho de 2022

O Vestido de Noiva

 

As circunstâncias estão um tanto nebulosas na minha memória. Hoje eu lembro apenas que estava na recepção de uma grande empresa, esperando pra falar com alguém que nem sei mais quem era.

A recepcionista usava aqueles fones presos à cabeça e mal se sabia se falava com alguém na linha ou com a gente, que esperava ali na recepção. Era preciso um olhar atento pra poder perceber a quem ela se dirigia, e isso era muito rápido, pois chegavam muitas ligações e eram várias pessoas falando com ela ao mesmo tempo.

Nas cadeiras, eu e mais três rapazes olhávamos sem vontade as capas das revistas antigas na mesa de centro. Um deles até pegou uma, sob o crivo dos outros, e virou umas poucas folhas para, em seguida, abandoná-la novamente ao seu destino enfadonho. Fosse em outro tempo, o tempo dos celulares, e a gente mal teria se olhado, reparado na ação um no outro, ou mesmo percebido a presença de algum ser em volta. Sem as telinhas nas mãos, entretanto, ouvidos e olhos se dispunham aos acontecimentos da vida, normalmente.

Depois de algum tempo restamos eu e mais um rapaz na sala. Mas a toada frenética da recepcionista continuava a todo vapor, com suas inúmeras linhas telefônicas tocando a todo instante. De súbito, uma dessas ligações me chamou a atenção, justamente quando a moça tentava, sem sucesso, falar em um tom mais baixo.

– Oi mãe. E aí, conseguiu marcar horário? Pode marcar a partir das 7 horas que eu chego a tempo. Sim, aqueles vestidos que a gente gostou. Olha, leva a revista pra mostrar lá na loja.

Do outro lado a mãe respondia algo e logo a conversa era audível novamente só do lado de cá.

– Isso, queria que a senhora marcasse hora naquela da Tijuca e nessa aí que a senhora viu por último, como é mesmo o nome? Isso, Casa Surf. Parece que essa loja é bem boa, especializada em vestidos de noivas. Pega o telefone dela e tenta marcar lá também.

De cabeça baixa, eu tentava não dar pinta de que estávamos todos ouvindo a conversa sobre o vestido de noiva. Mas assim que eu escutei o nome da loja levantei prontamente a cabeça e olhei pra recepcionista. Ainda bem que ela não percebeu a minha intromissão e eu fiquei pensando se avisava ou deixava tudo como estava. Ponderei por alguns instantes que, se alertasse, seria intromissão, por estar ouvindo a conversa alheia. Por outro lado, se nada fizesse, ela nunca iria achar o tal telefone da Casa Surf. Até porque a tal loja não existe. O nome correto era Casa Assuf, uma tradicional loja de roupas para casamentos e recepções.

De vez em quando a tal moça, agora noiva, pedia um momento à mãe e atendia outra ligação. Em seguida, voltava e retomava a conversa do mesmo ponto e com a mesmíssima entonação anterior. Era preciso muita desenvoltura naquela alternância toda de ligações e eu, enfim, já admirava a sua competência. Assim, decidi que iria ajudar.

Levantei com calma e fui me aproximando da sua mesa tentando aparentar desinteresse. Eu esperava que ela fizesse uma pausa pra eu poder falar. Mas nada. A conversa continuava buliçosa de parte a parte, sem qualquer pausa possível para a minha intervenção. Fiquei rodando, andando pelo ambiente, ora longe, ora me aproximando um pouco mais e, de repente, a moça parou tudo e me interpelou:

– Você está procurando o banheiro?

Surpreso com a pergunta um tanto direta, eu respondi apenas com um não, automático, já deduzindo o surgimento de uma chance pra falar o que eu realmente queria.

– Mas eu preciso te avisar de uma coisa. Posso?

– Avisar? Sim, ok, pode. O que é?

– É que o nome dessa loja que você mencionou ao telefone está errado. O nome da loja é Casa Assuf e não Casa Surf, como você falou.

– Ah, é mesmo? Hum... bem que eu estava achando estranho esse nome pra uma loja de vestido de noiva. Puxa, muito obrigada. Vou avisar pra minha mãe. Obrigada mesmo.

Eu então cruzei a porta de vidro e fiquei ali fora, de onde se via o estacionamento e outras entradas da empresa. Era fora da sala, porém dava pra ouvir tudo que se falava lá dentro. Talvez por conta da janela aberta e tendo somente uma persiana a cortar a claridade, não sei. Só sei que dava pra ouvir tudo. E foi surpreendente o que eu ouvi.

– Mãe, escuta só, você tem de ter mais atenção nessas coisas. Assim você não me ajuda e até me atrapalha. Você não sabe nem o nome correto da loja. Não é Casa Surf. É Casa Assuf. Assuf, com efe no final. A gente está falando de vestido de noiva há mais de um ano e nem o nome certo da loja a gente sabe! Foi preciso um retardado qualquer vir aqui e me avisar. Que vergonha! Não mãe, deixa eu terminar. Um cara que, por acaso, ouviu a nossa conversa e me corrigiu, assim, na minha cara. Um Zé Ninguém. Caído de paraquedas aqui na recepção. Não mãe, ele deve saber mais de vestido de noiva do que a gente, mãe. Ah, por favor!

Depois de uma pequena pausa pra respirar ela concluiu:

– Casa Surf. É brincadeira isso, gente. Eu estou calma, mãe. Mãe, escuta, eu estou calma. Olha, eu preciso desligar, tá? Depois a gente se fala de novo. Beijo.

Nesse momento a coitada da moça até tirou o fone e o pôs na mesa. Da fresta da janela eu pude ver que ela balançava a cabeça de um lado pro outro, às vezes pondo todos os dedos na própria fronte. Devia estar relembrando toda a conversa e avaliando que, em pouco tempo, já teria de estar de novo recomposta para continuar o trabalho.

Uma outra moça chegou em seguida e ficou conversando com ela atrás do balcão. O tom de voz das duas era seguramente inaudível e, de vez em quando, elas olhavam pra mim e voltavam a falar. Eu, já de volta ao meu lugar de espera, fiz que nem percebia, entendendo o desconforto da cena recente.

Foi então que ela fez um sinal me chamando. Disse que era a minha vez de entrar. Quando ela instalou o fone de novo na cabeça falou com alguém, respondendo ok por duas vezes, como que confirmando a minha entrada. Em seguida pegou uma caneta e um crachá adesivo e me perguntou:

– Como é mesmo o seu nome?

– Ah, pode botar Zé Ninguém.

Ela levantou os olhos do papel, botou as mãos no peito lentamente e disse um dolorido e sussurrado “me desculpa”. A surpresa de saber que eu tinha ouvido tudo certamente a constrangeu.

Dissimulado, eu troquei imediatamente a cara fechada por um pequeno sorriso e busquei desanuviar a situação:

– Brincadeira, meu nome é Anderson. Eu que peço desculpas por ter ouvido a sua conversa. Mas deu tudo certo, né? Pelo menos você agora sabe o nome certo da loja, que não é Surf. Olha, muita sorte com o seu vestido de noiva, espero que seu casamento seja lindo e que você tenha uma cerimônia inesquecível.

Enquanto eu entrava, pude ouvir a sequência de obrigados que ela repetia, um atrás do outro.

 

 

3 comentários:

  1. Haja constrangimento pra consertar essa noiva mal educada! Só com um Zé Ninguém top de linha , premium, muito especial como você.

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  2. O constrangimento foi tamanho que você acabou sendo convidado para esse casamento, lembra? Recepcionista da Reynolds/Latasa - Santa Cruz. kkk...

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  3. Kkk
    Pude rir um bocado com essa situação narrada.
    Muito grato caro Anderson.

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