As
circunstâncias estão um tanto nebulosas na minha memória. Hoje eu lembro apenas
que estava na recepção de uma grande empresa, esperando pra falar com alguém
que nem sei mais quem era.
A
recepcionista usava aqueles fones presos à cabeça e mal se sabia se falava com
alguém na linha ou com a gente, que esperava ali na recepção. Era preciso um olhar atento pra poder perceber a quem ela se dirigia, e isso era muito rápido, pois
chegavam muitas ligações e eram várias pessoas falando com ela ao mesmo tempo.
Nas cadeiras,
eu e mais três rapazes olhávamos sem vontade as capas das revistas antigas na
mesa de centro. Um deles até pegou uma, sob o crivo dos outros, e virou umas poucas folhas para, em seguida, abandoná-la novamente ao seu destino enfadonho.
Fosse em outro tempo, o tempo dos celulares, e a gente mal teria se olhado,
reparado na ação um no outro, ou mesmo percebido a presença de algum ser em
volta. Sem as telinhas nas mãos, entretanto, ouvidos e olhos se dispunham aos
acontecimentos da vida, normalmente.
Depois de
algum tempo restamos eu e mais um rapaz na sala. Mas a toada frenética da
recepcionista continuava a todo vapor, com suas inúmeras linhas telefônicas
tocando a todo instante. De súbito, uma dessas ligações me chamou a atenção, justamente
quando a moça tentava, sem sucesso, falar em um tom mais baixo.
– Oi mãe. E aí,
conseguiu marcar horário? Pode marcar a partir das 7 horas que eu chego a
tempo. Sim, aqueles vestidos que a gente gostou. Olha, leva a revista pra
mostrar lá na loja.
Do outro lado
a mãe respondia algo e logo a conversa era audível novamente só do lado de cá.
– Isso, queria
que a senhora marcasse hora naquela da Tijuca e nessa aí que a senhora viu por
último, como é mesmo o nome? Isso, Casa Surf. Parece que essa loja é bem boa,
especializada em vestidos de noivas. Pega o telefone dela e tenta marcar lá
também.
De cabeça
baixa, eu tentava não dar pinta de que estávamos todos ouvindo a conversa sobre
o vestido de noiva. Mas assim que eu escutei o nome da loja levantei prontamente
a cabeça e olhei pra recepcionista. Ainda bem que ela não percebeu a minha
intromissão e eu fiquei pensando se avisava ou deixava tudo como estava.
Ponderei por alguns instantes que, se alertasse, seria intromissão, por estar
ouvindo a conversa alheia. Por outro lado, se nada fizesse, ela nunca iria
achar o tal telefone da Casa Surf. Até porque a tal loja não existe. O nome
correto era Casa Assuf, uma tradicional loja de roupas para casamentos e
recepções.
De vez em
quando a tal moça, agora noiva, pedia um momento à mãe e atendia outra ligação.
Em seguida, voltava e retomava a conversa do mesmo ponto e com a mesmíssima
entonação anterior. Era preciso muita desenvoltura naquela alternância toda de
ligações e eu, enfim, já admirava a sua competência. Assim, decidi que iria
ajudar.
Levantei com
calma e fui me aproximando da sua mesa tentando aparentar desinteresse. Eu
esperava que ela fizesse uma pausa pra eu poder falar. Mas nada. A conversa
continuava buliçosa de parte a parte, sem qualquer pausa possível para a minha
intervenção. Fiquei rodando, andando pelo ambiente, ora longe, ora me
aproximando um pouco mais e, de repente, a moça parou tudo e me interpelou:
– Você está
procurando o banheiro?
Surpreso com a
pergunta um tanto direta, eu respondi apenas com um não, automático, já deduzindo
o surgimento de uma chance pra falar o que eu realmente queria.
– Mas eu preciso
te avisar de uma coisa. Posso?
– Avisar? Sim,
ok, pode. O que é?
– É que o nome
dessa loja que você mencionou ao telefone está errado. O nome da loja é Casa
Assuf e não Casa Surf, como você falou.
– Ah, é mesmo?
Hum... bem que eu estava achando estranho esse nome pra uma loja de vestido de
noiva. Puxa, muito obrigada. Vou avisar pra minha mãe. Obrigada mesmo.
Eu então
cruzei a porta de vidro e fiquei ali fora, de onde se via o estacionamento e
outras entradas da empresa. Era fora da sala, porém dava pra ouvir tudo que se
falava lá dentro. Talvez por conta da janela aberta e tendo somente uma
persiana a cortar a claridade, não sei. Só sei que dava pra ouvir tudo. E foi
surpreendente o que eu ouvi.
– Mãe, escuta
só, você tem de ter mais atenção nessas coisas. Assim você não me ajuda e até
me atrapalha. Você não sabe nem o nome correto da loja. Não é Casa Surf. É Casa
Assuf. Assuf, com efe no final. A gente está falando de vestido de noiva há
mais de um ano e nem o nome certo da loja a gente sabe! Foi preciso um
retardado qualquer vir aqui e me avisar. Que vergonha! Não mãe, deixa eu
terminar. Um cara que, por acaso, ouviu a nossa conversa e me corrigiu, assim,
na minha cara. Um Zé Ninguém. Caído de paraquedas aqui na recepção. Não mãe, ele
deve saber mais de vestido de noiva do que a gente, mãe. Ah, por favor!
Depois de uma
pequena pausa pra respirar ela concluiu:
– Casa Surf. É
brincadeira isso, gente. Eu estou calma, mãe. Mãe, escuta, eu estou calma.
Olha, eu preciso desligar, tá? Depois a gente se fala de novo. Beijo.
Nesse momento
a coitada da moça até tirou o fone e o pôs na mesa. Da fresta da janela eu pude
ver que ela balançava a cabeça de um lado pro outro, às vezes pondo todos os
dedos na própria fronte. Devia estar relembrando toda a conversa e avaliando
que, em pouco tempo, já teria de estar de novo recomposta para continuar o
trabalho.
Uma outra moça
chegou em seguida e ficou conversando com ela atrás do balcão. O tom de voz das
duas era seguramente inaudível e, de vez em quando, elas olhavam pra mim e
voltavam a falar. Eu, já de volta ao meu lugar de espera, fiz que nem percebia,
entendendo o desconforto da cena recente.
Foi então que
ela fez um sinal me chamando. Disse que era a minha vez de entrar. Quando ela
instalou o fone de novo na cabeça falou com alguém, respondendo ok por duas
vezes, como que confirmando a minha entrada. Em seguida pegou uma caneta e um
crachá adesivo e me perguntou:
– Como é mesmo
o seu nome?
– Ah, pode
botar Zé Ninguém.
Ela levantou
os olhos do papel, botou as mãos no peito lentamente e disse um dolorido e
sussurrado “me desculpa”. A surpresa de saber que eu tinha ouvido tudo
certamente a constrangeu.
Dissimulado,
eu troquei imediatamente a cara fechada por um pequeno sorriso e busquei desanuviar
a situação:
– Brincadeira,
meu nome é Anderson. Eu que peço desculpas por ter ouvido a sua conversa. Mas
deu tudo certo, né? Pelo menos você agora sabe o nome certo da loja, que não é
Surf. Olha, muita sorte com o seu vestido de noiva, espero que seu casamento
seja lindo e que você tenha uma cerimônia inesquecível.
Enquanto eu
entrava, pude ouvir a sequência de obrigados que ela repetia, um atrás do
outro.
Haja constrangimento pra consertar essa noiva mal educada! Só com um Zé Ninguém top de linha , premium, muito especial como você.
ResponderExcluirO constrangimento foi tamanho que você acabou sendo convidado para esse casamento, lembra? Recepcionista da Reynolds/Latasa - Santa Cruz. kkk...
ResponderExcluirKkk
ResponderExcluirPude rir um bocado com essa situação narrada.
Muito grato caro Anderson.