Quando eu fiz
nove anos meu pai me deu uma vitrola de presente. Era uma Philips, portátil,
cuja tampa era também a caixa de som, só precisando ligá-la à saída de áudio.
Tinha um som bom aquela caixa, mas o curioso é que, junto com a vitrola, eu
ganhei também um disco do Johnny Mathis que completava o presente.
Johnny Mathis foi
o cantor preferido do meu pai a vida toda. Portanto, na família, quem tinha
essa informação deu uma sonora risada quando eu abri o embrulho do disco,
depois de montar toda a vitrola nova. Era um presente pro filho, ok, mas o pai
é quem ia se regozijar muito mais ao ouvir o seu artista preferido. Muita
coincidência, teriam dito alguns.
Claro, depois
eu ganhei outros discos, Carpenters, James Taylor, Bread e também Tim Maia e
Elis Regina, ela que era a paixão notória da minha mãe. Mas enquanto eu tinha só
aquele disco, o único disco, era o Johnny Mathis que tocava mesmo o tempo todo.
Muitos anos
depois eu dei de presente ao meu pai um tocador de Mp3. Eu já morava em
Florianópolis e em um dos Natais levei o tal aparelho, minúsculo na opinião
dele, e que foi festejado não só por ser novidade, mas por estar recheado de
músicas do Johnny Mathis. Ele passava o dia ouvindo o player. E cantava junto,
sem perceber que a gente só ouvia a voz dele e ainda dava risada da sua
fisionomia, enquanto ele se divertia com o fone, apertando nas laterais pra
ouvir melhor.
Foi então que
nessas trocas de músicas, nessa mania que a gente tinha de se encantar e recomendar
os novos cantores que surgiam e suas novas canções, meu filho Deco, um certo
dia, me mandou uma matéria da Mallu Magalhães. Cantora nova, recém surgida, com
uma voz ímpar, de menina. Foi um sucesso de imediato. Eu gostei da sua voz mas
apreciei o fato de ela ser compositora também, e ouvia tudo que ele me mandava
da Mallu.
Algum tempo se
passou e o Deco veio a Floripa passar uns dias. Fui buscá-lo no aeroporto e
assim que entramos no carro eu disse:
– Puxa,
esqueci uma coisa ali. Vou buscar lá dentro. É só um instante. Eu já volto.
Antes de sair,
porém, eu liguei o rádio do carro, deixando tocar a Malu Magalhães que eu já
havia preparado antes, especialmente pra ele. Foi só ligar o som e dar play.
Quando eu
cheguei de volta ele estava rindo, dizendo que o rádio tocou Malu Magalhães no
mesmo instante em que eu o liguei e que aquilo tinha sido a maior coincidência.
Eu, então, só repeti que sim, confirmando que foi coincidência, mas rindo de
volta e denunciando a armação que ele já percebera de pronto.
O tempo, bem o
tempo é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho. E se Caetano ainda
canta isso, no auge dos seus 80 anos, ele deve saber de muito mais ao perceber
que o tempo, por ser tão inventivo e parecer contínuo, é um dos deuses mais
lindos.
Pois o fato é
que, passado mais algum tempo, eu é que fui ao Rio, de novo para um período de
festas. Sabia que o Deco iria me trazer do aeroporto e sabia também que tinha
rolado um carro novo por aqueles dias.
Assim que
entramos ele me mostrou o painel, todo azul, que mais parecia uma cabine de
avião, com tantos botões iluminados e teclas aqui e ali. Enquanto cruzávamos a
cidade ele ia me contando as suas novidades e eu as minhas, até que ele lembrou
que tinha de falar com alguém pelo caminho e demos uma parada perto da Lagoa.
Ele
estacionou, disse que voltaria logo e ligou o rádio pra que eu aguardasse
ouvindo uma musiquinha. Me mostrou o botão do volume e apertou uma tecla
qualquer pra acionar o som. No mesmo instante em que ele fechava a porta e ficava
só o silêncio, James Taylor, bem baixinho, começava a cantar. Assim que eu ouvi
os primeiros acordes da introdução já fui logo apurando o ouvido pra não perder
nada daquilo.
Não sei quanto
tempo eu fiquei ali, eu e o James Taylor trocando músicas, lembranças e
confidências. Me lembrei do meu pai e seu Johnny Mathis e da Elis da minha mãe
encantada.
Ali, sentado
no carro, no meu arrebatamento eu dizia ao tempo: ouve bem o que eu te digo,
pois quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido.
Tempo, tempo, tempo, tempo.
Quando meu
filho retornou ao carro, com um sorriso de filho, eu falei da coincidência de
ter tocado James Taylor no rádio exatamente na hora em que ele o ligou. Ele
apenas concordou e reforçou que, sim, aquilo teria sido uma pura coincidência. Nada
mais. Pois que elas acontecem de tempos em tempos.
Eu novamente sorri.
E intui que juntos riam meu pai e minha mãe.
E também o
tempo.
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