terça-feira, 9 de agosto de 2022

Coincidências

 

Quando eu fiz nove anos meu pai me deu uma vitrola de presente. Era uma Philips, portátil, cuja tampa era também a caixa de som, só precisando ligá-la à saída de áudio. Tinha um som bom aquela caixa, mas o curioso é que, junto com a vitrola, eu ganhei também um disco do Johnny Mathis que completava o presente.

Johnny Mathis foi o cantor preferido do meu pai a vida toda. Portanto, na família, quem tinha essa informação deu uma sonora risada quando eu abri o embrulho do disco, depois de montar toda a vitrola nova. Era um presente pro filho, ok, mas o pai é quem ia se regozijar muito mais ao ouvir o seu artista preferido. Muita coincidência, teriam dito alguns.

Claro, depois eu ganhei outros discos, Carpenters, James Taylor, Bread e também Tim Maia e Elis Regina, ela que era a paixão notória da minha mãe. Mas enquanto eu tinha só aquele disco, o único disco, era o Johnny Mathis que tocava mesmo o tempo todo.

Muitos anos depois eu dei de presente ao meu pai um tocador de Mp3. Eu já morava em Florianópolis e em um dos Natais levei o tal aparelho, minúsculo na opinião dele, e que foi festejado não só por ser novidade, mas por estar recheado de músicas do Johnny Mathis. Ele passava o dia ouvindo o player. E cantava junto, sem perceber que a gente só ouvia a voz dele e ainda dava risada da sua fisionomia, enquanto ele se divertia com o fone, apertando nas laterais pra ouvir melhor.

Foi então que nessas trocas de músicas, nessa mania que a gente tinha de se encantar e recomendar os novos cantores que surgiam e suas novas canções, meu filho Deco, um certo dia, me mandou uma matéria da Mallu Magalhães. Cantora nova, recém surgida, com uma voz ímpar, de menina. Foi um sucesso de imediato. Eu gostei da sua voz mas apreciei o fato de ela ser compositora também, e ouvia tudo que ele me mandava da Mallu.

Algum tempo se passou e o Deco veio a Floripa passar uns dias. Fui buscá-lo no aeroporto e assim que entramos no carro eu disse:

– Puxa, esqueci uma coisa ali. Vou buscar lá dentro. É só um instante. Eu já volto.

Antes de sair, porém, eu liguei o rádio do carro, deixando tocar a Malu Magalhães que eu já havia preparado antes, especialmente pra ele. Foi só ligar o som e dar play.

Quando eu cheguei de volta ele estava rindo, dizendo que o rádio tocou Malu Magalhães no mesmo instante em que eu o liguei e que aquilo tinha sido a maior coincidência. Eu, então, só repeti que sim, confirmando que foi coincidência, mas rindo de volta e denunciando a armação que ele já percebera de pronto.

O tempo, bem o tempo é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho. E se Caetano ainda canta isso, no auge dos seus 80 anos, ele deve saber de muito mais ao perceber que o tempo, por ser tão inventivo e parecer contínuo, é um dos deuses mais lindos.

Pois o fato é que, passado mais algum tempo, eu é que fui ao Rio, de novo para um período de festas. Sabia que o Deco iria me trazer do aeroporto e sabia também que tinha rolado um carro novo por aqueles dias.

Assim que entramos ele me mostrou o painel, todo azul, que mais parecia uma cabine de avião, com tantos botões iluminados e teclas aqui e ali. Enquanto cruzávamos a cidade ele ia me contando as suas novidades e eu as minhas, até que ele lembrou que tinha de falar com alguém pelo caminho e demos uma parada perto da Lagoa.

Ele estacionou, disse que voltaria logo e ligou o rádio pra que eu aguardasse ouvindo uma musiquinha. Me mostrou o botão do volume e apertou uma tecla qualquer pra acionar o som. No mesmo instante em que ele fechava a porta e ficava só o silêncio, James Taylor, bem baixinho, começava a cantar. Assim que eu ouvi os primeiros acordes da introdução já fui logo apurando o ouvido pra não perder nada daquilo.

Não sei quanto tempo eu fiquei ali, eu e o James Taylor trocando músicas, lembranças e confidências. Me lembrei do meu pai e seu Johnny Mathis e da Elis da minha mãe encantada.

Ali, sentado no carro, no meu arrebatamento eu dizia ao tempo: ouve bem o que eu te digo, pois quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido. Tempo, tempo, tempo, tempo.

Quando meu filho retornou ao carro, com um sorriso de filho, eu falei da coincidência de ter tocado James Taylor no rádio exatamente na hora em que ele o ligou. Ele apenas concordou e reforçou que, sim, aquilo teria sido uma pura coincidência. Nada mais. Pois que elas acontecem de tempos em tempos.

Eu novamente sorri. E intui que juntos riam meu pai e minha mãe.

E também o tempo.



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