quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Médica


Dois mil e vinte foi um ano difícil de atravessar. Principalmente para quem pegou Covid, como eu. O mundo vivia um sobressalto coletivo e a Ciência foi, para a maioria, o divisor de águas que fez toda a diferença entre viver e fenecer, expondo ao planeta o nosso abismo particular, que opunha civilização e ignorância.

No Brasil o circo dos horrores foi pesado e mórbido, com os desvarios fascistas de praxe que negavam a cura pela vacina e juravam ter visto caixões vazios dentro das sepulturas.

Enquanto isso algumas igrejas evangélicas político partidárias davam bençãos a remédios para vermes, profetas indicavam unções com ozônio e videntes imundos bradavam que jamais chegaríamos a mil mortes no país, nesta que era uma pandemia que duraria, no máximo, três meses.

Então, naquele fatídico ano, no final do mês de setembro, eu comecei a sentir alguns poucos sintomas. No início não era nada muito incômodo, mas, depois de o teste dar positivo, tudo se intensificou. Um enorme enjoo me impedia até mesmo de comer, enquanto uma dor forte, que se estendia por todo o corpo, não me deixava fazer nada, sequer dormir.

Eu já estava me acostumando com as longas noites vagando pela sala de casa, no escuro, vendo o relógio digital trocar os seus números a cada minuto, quando surgiu o contato de uma médica, clínica geral, que estava seguindo uma tendência, uma bem-vinda tendência, de atender aos pacientes por via remota, através de chamadas com câmera por aplicativos digitais.

No dia e hora marcados, eu e Rê estávamos na frente da telinha conversando com a médica. Um alívio. Um alento que só depois de algum tempo eu pude entender, já que naqueles dias eu mal conseguiria sair de casa, caminhar ou ir a uma consulta fora. E também havia o receio de contaminar as outras pessoas, de seguir os protocolos de distanciamento e ao mesmo tempo estar necessitando de cuidados médicos.

Aquela primeira consulta durou muito tempo, nem sei ao certo quanto, e terminou com ela nos pedindo vários exames e passando alguns remédios iniciais para o enjoo e a dor no corpo. Também receitou um calmante, coisa que eu jamais tinha tomado na vida, mas que se revelou de grande ajuda para as próximas noites de insônia.

O fato intrigante foi que depois da segunda e da terceira conversa, igualmente por câmera, quando a gente indicou que faríamos um novo depósito com o mesmo valor da primeira consulta, ela respondeu que não, não era necessário, pois aquelas seriam consultas de retorno, nas quais ela estava apenas avaliando a evolução do quadro clínico e analisando os resultados dos exames.

Durante a semana, quando ela mandava mensagens perguntando como eu estava me sentindo, eu dizia pra Rê, que era quem respondia, que não achava certo todas aquelas consultas e a gente só pagar uma única vez. Mas aí, chegava na hora ela desconversava, dizia que não iria cobrar da gente e ficava de aceitar o pagamento na próxima vez, o que por fim, jamais aconteceu. Por resistência dela, pois, o que a gente só compreendeu bem depois.

Eu fui melhorando bem rápido com os remédios. Mas com toda a certeza a minha melhora foi totalmente resultado da atenção daquela doutora, do cuidado que ela tinha em me proporcionar calma e tranquilidade através das suas prescrições e prognósticos médicos. Eu tinha a nítida sensação de que estava me recuperando e, mais do que isso, sentia que se algo piorasse, ela ia resolver e de algum modo me salvar. Diante de todo o quadro mundial e da situação das mortes que a gente via todos os dias nos telejornais, a sua imagem calma e serena durante as consultas virtuais, me dando esperança e cura, fez toda a diferença.

Por conta desse país desigual e injusto, onde muitos não tiveram e provavelmente não terão a mesma oportunidade, deixo aqui o meu lamento e a minha indignação.

Durante esses quase dois anos, quando eu penso nesse período em que eu tive a Covid, por algumas vezes me vem uma certa incredulidade e eu ponho em suspeição se tudo aquilo realmente aconteceu. As poucas alucinações que eu tive naquelas três semanas da doença só davam conta de me aterrorizar e me espantar o sono, já bem difícil de se aproximar. E até nessas horas a imagem da médica, da minha médica, acalmando tudo, apascentando o meu espírito dolorido, era algo que vinha me resgatar de onde eu estivesse.

E é no intuito de resgatar esse sentimento, que une enorme gratidão e reconhecimento, que agora torno pública essa história pessoal.

Doutora, que a Paz que a senhora me proporcionou retorne em dobro, o quanto couber, para a sua existência. Esta e as próximas.

Obrigado por me curar.

 


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Coincidências

 

Quando eu fiz nove anos meu pai me deu uma vitrola de presente. Era uma Philips, portátil, cuja tampa era também a caixa de som, só precisando ligá-la à saída de áudio. Tinha um som bom aquela caixa, mas o curioso é que, junto com a vitrola, eu ganhei também um disco do Johnny Mathis que completava o presente.

Johnny Mathis foi o cantor preferido do meu pai a vida toda. Portanto, na família, quem tinha essa informação deu uma sonora risada quando eu abri o embrulho do disco, depois de montar toda a vitrola nova. Era um presente pro filho, ok, mas o pai é quem ia se regozijar muito mais ao ouvir o seu artista preferido. Muita coincidência, teriam dito alguns.

Claro, depois eu ganhei outros discos, Carpenters, James Taylor, Bread e também Tim Maia e Elis Regina, ela que era a paixão notória da minha mãe. Mas enquanto eu tinha só aquele disco, o único disco, era o Johnny Mathis que tocava mesmo o tempo todo.

Muitos anos depois eu dei de presente ao meu pai um tocador de Mp3. Eu já morava em Florianópolis e em um dos Natais levei o tal aparelho, minúsculo na opinião dele, e que foi festejado não só por ser novidade, mas por estar recheado de músicas do Johnny Mathis. Ele passava o dia ouvindo o player. E cantava junto, sem perceber que a gente só ouvia a voz dele e ainda dava risada da sua fisionomia, enquanto ele se divertia com o fone, apertando nas laterais pra ouvir melhor.

Foi então que nessas trocas de músicas, nessa mania que a gente tinha de se encantar e recomendar os novos cantores que surgiam e suas novas canções, meu filho Deco, um certo dia, me mandou uma matéria da Mallu Magalhães. Cantora nova, recém surgida, com uma voz ímpar, de menina. Foi um sucesso de imediato. Eu gostei da sua voz mas apreciei o fato de ela ser compositora também, e ouvia tudo que ele me mandava da Mallu.

Algum tempo se passou e o Deco veio a Floripa passar uns dias. Fui buscá-lo no aeroporto e assim que entramos no carro eu disse:

– Puxa, esqueci uma coisa ali. Vou buscar lá dentro. É só um instante. Eu já volto.

Antes de sair, porém, eu liguei o rádio do carro, deixando tocar a Malu Magalhães que eu já havia preparado antes, especialmente pra ele. Foi só ligar o som e dar play.

Quando eu cheguei de volta ele estava rindo, dizendo que o rádio tocou Malu Magalhães no mesmo instante em que eu o liguei e que aquilo tinha sido a maior coincidência. Eu, então, só repeti que sim, confirmando que foi coincidência, mas rindo de volta e denunciando a armação que ele já percebera de pronto.

O tempo, bem o tempo é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho. E se Caetano ainda canta isso, no auge dos seus 80 anos, ele deve saber de muito mais ao perceber que o tempo, por ser tão inventivo e parecer contínuo, é um dos deuses mais lindos.

Pois o fato é que, passado mais algum tempo, eu é que fui ao Rio, de novo para um período de festas. Sabia que o Deco iria me trazer do aeroporto e sabia também que tinha rolado um carro novo por aqueles dias.

Assim que entramos ele me mostrou o painel, todo azul, que mais parecia uma cabine de avião, com tantos botões iluminados e teclas aqui e ali. Enquanto cruzávamos a cidade ele ia me contando as suas novidades e eu as minhas, até que ele lembrou que tinha de falar com alguém pelo caminho e demos uma parada perto da Lagoa.

Ele estacionou, disse que voltaria logo e ligou o rádio pra que eu aguardasse ouvindo uma musiquinha. Me mostrou o botão do volume e apertou uma tecla qualquer pra acionar o som. No mesmo instante em que ele fechava a porta e ficava só o silêncio, James Taylor, bem baixinho, começava a cantar. Assim que eu ouvi os primeiros acordes da introdução já fui logo apurando o ouvido pra não perder nada daquilo.

Não sei quanto tempo eu fiquei ali, eu e o James Taylor trocando músicas, lembranças e confidências. Me lembrei do meu pai e seu Johnny Mathis e da Elis da minha mãe encantada.

Ali, sentado no carro, no meu arrebatamento eu dizia ao tempo: ouve bem o que eu te digo, pois quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido. Tempo, tempo, tempo, tempo.

Quando meu filho retornou ao carro, com um sorriso de filho, eu falei da coincidência de ter tocado James Taylor no rádio exatamente na hora em que ele o ligou. Ele apenas concordou e reforçou que, sim, aquilo teria sido uma pura coincidência. Nada mais. Pois que elas acontecem de tempos em tempos.

Eu novamente sorri. E intui que juntos riam meu pai e minha mãe.

E também o tempo.