Dois mil e
vinte foi um ano difícil de atravessar. Principalmente para quem pegou Covid,
como eu. O mundo vivia um sobressalto coletivo e a Ciência foi, para a maioria,
o divisor de águas que fez toda a diferença entre viver e fenecer, expondo ao
planeta o nosso abismo particular, que opunha civilização e ignorância.
No Brasil o
circo dos horrores foi pesado e mórbido, com os desvarios fascistas de praxe
que negavam a cura pela vacina e juravam ter visto caixões vazios dentro das
sepulturas.
Enquanto isso
algumas igrejas evangélicas político partidárias davam bençãos a remédios para
vermes, profetas indicavam unções com ozônio e videntes imundos bradavam que
jamais chegaríamos a mil mortes no país, nesta que era uma pandemia que duraria,
no máximo, três meses.
Então, naquele
fatídico ano, no final do mês de setembro, eu comecei a sentir alguns poucos
sintomas. No início não era nada muito incômodo, mas, depois de o teste dar
positivo, tudo se intensificou. Um enorme enjoo me impedia até mesmo de comer,
enquanto uma dor forte, que se estendia por todo o corpo, não me deixava fazer
nada, sequer dormir.
Eu já estava
me acostumando com as longas noites vagando pela sala de casa, no escuro, vendo
o relógio digital trocar os seus números a cada minuto, quando surgiu o contato
de uma médica, clínica geral, que estava seguindo uma tendência, uma bem-vinda
tendência, de atender aos pacientes por via remota, através de chamadas com
câmera por aplicativos digitais.
No dia e hora
marcados, eu e Rê estávamos na frente da telinha conversando com a médica. Um
alívio. Um alento que só depois de algum tempo eu pude entender, já que
naqueles dias eu mal conseguiria sair de casa, caminhar ou ir a uma consulta
fora. E também havia o receio de contaminar as outras pessoas, de seguir os
protocolos de distanciamento e ao mesmo tempo estar necessitando de cuidados
médicos.
Aquela primeira
consulta durou muito tempo, nem sei ao certo quanto, e terminou com ela nos
pedindo vários exames e passando alguns remédios iniciais para o enjoo e a dor
no corpo. Também receitou um calmante, coisa que eu jamais tinha tomado na
vida, mas que se revelou de grande ajuda para as próximas noites de insônia.
O fato
intrigante foi que depois da segunda e da terceira conversa, igualmente por
câmera, quando a gente indicou que faríamos um novo depósito com o mesmo valor da
primeira consulta, ela respondeu que não, não era necessário, pois aquelas
seriam consultas de retorno, nas quais ela estava apenas avaliando a evolução
do quadro clínico e analisando os resultados dos exames.
Durante a
semana, quando ela mandava mensagens perguntando como eu estava me sentindo, eu
dizia pra Rê, que era quem respondia, que não achava certo todas aquelas
consultas e a gente só pagar uma única vez. Mas aí, chegava na hora ela
desconversava, dizia que não iria cobrar da gente e ficava de aceitar o
pagamento na próxima vez, o que por fim, jamais aconteceu. Por resistência
dela, pois, o que a gente só compreendeu bem depois.
Eu fui
melhorando bem rápido com os remédios. Mas com toda a certeza a minha melhora
foi totalmente resultado da atenção daquela doutora, do cuidado que ela tinha
em me proporcionar calma e tranquilidade através das suas prescrições e prognósticos
médicos. Eu tinha a nítida sensação de que estava me recuperando e, mais do que
isso, sentia que se algo piorasse, ela ia resolver e de algum modo me salvar.
Diante de todo o quadro mundial e da situação das mortes que a gente via todos
os dias nos telejornais, a sua imagem calma e serena durante as consultas
virtuais, me dando esperança e cura, fez toda a diferença.
Por conta
desse país desigual e injusto, onde muitos não tiveram e provavelmente não
terão a mesma oportunidade, deixo aqui o meu lamento e a minha indignação.
Durante esses
quase dois anos, quando eu penso nesse período em que eu tive a Covid, por
algumas vezes me vem uma certa incredulidade e eu ponho em suspeição se tudo
aquilo realmente aconteceu. As poucas alucinações que eu tive naquelas três
semanas da doença só davam conta de me aterrorizar e me espantar o sono, já bem
difícil de se aproximar. E até nessas horas a imagem da médica, da minha
médica, acalmando tudo, apascentando o meu espírito dolorido, era algo que
vinha me resgatar de onde eu estivesse.
E é no intuito de resgatar esse sentimento, que une enorme gratidão e reconhecimento, que agora
torno pública essa história pessoal.
Doutora, que a Paz que a senhora me proporcionou retorne em dobro, o quanto couber, para a sua existência. Esta e as próximas.
Obrigado por me curar.
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