quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O Mestre José Louzeiro


Um dos meus primeiros trabalhos na faculdade de jornalismo foi entrevistar uma pessoa famosa. Se não me engano foi logo no segundo semestre do curso e, bem, morando no Rio de Janeiro, os alunos puderam escolher todo tipo de pessoa, dentre os mais variados matizes daquilo que se pode vir a entender como famosos, ao gosto do freguês.

A gente tinha liberdade pra escolher o entrevistado e, em vista de metade dos colegas estarem rumando para o lado dos cantores, atores e jogadores de futebol, eu decidi que ia fazer tudo pra não escolher nada daquilo.

Conforme o aluno ia definindo o nome do personagem o professor ajudava, orientava e ia organizando a pauta junto com cada um, alertando para os detalhes que ele iria cobrar quando fosse avaliar o trabalho. Nesse sentido, contava muito a posição do entrevistado e eu já estava um tanto aflito, pois tinha falado com todo mundo sobre quem poderia ser o meu alvo e ninguém tinha me dado uma pista, um norte.

Foi então que meu amigo Renê me fez uma proposta. Primeiro, disse que o seu indicado não era assim, tão famoso, o tipo de pessoa que é reconhecida na rua. Mas depois assegurou que era um sujeito muito singular e que ia ter o maior prazer em colaborar com um futuro jornalista, no caso eu.

Assim que ele falou o nome – José Louzeiro – eu devo ter feito uma cara de nada. Mas logo a seguir, ele disse que se tratava do autor do livro Lúcio Flávio, que tinha virado filme, e eu então aderi logo de pronto à sua indicação, agradecendo e pedindo mais detalhes sobre o escritor e também jornalista.

Não havia internet na época e, portanto, foi lendo algumas orelhas dos seus livros e algumas reportagens sobre o filme famoso, que mencionavam outras obras suas, que eu fui esboçando o perfil do meu escolhido.

Marcamos dali a alguns dias a entrevista. Ele morava no bairro das Laranjeiras, perto do Estádio do Fluminense, numa ruazinha tranquila, e o seu apartamento possuía o maior número de livros que eu já tinha visto em um lugar que não fosse nem biblioteca nem livraria.

Eu mandei os abraços que o Renê tinha pedido e aproveitei para agradecer pelo assentimento do mestre em me receber. Ele maneou a cabeça e disse que o Renê era seu chapa. Chapa e querido amigo.

Eu tinha levado uma boa quantidade de perguntas, todas escritas e numeradas, no meu bloco de apuração, ferramenta indispensável a qualquer jornalista que se preze. Acontece que o papo corria tão agradável, fluido e cheio de detalhes que eu nem me preocupei com o roteiro prévio que, por fim, estava ali apenas pra me dar uma certa segurança.

Além do bloco, outra ferramenta essencial era o gravador e, por via das dúvidas, eu também estava gravando a conversa. Então, a minha tranquilidade era tal que o mestre ia se enveredando pelos causos da sua vida de jornalista policial, escritor e roteirista, e não tinha o menor cabimento eu interromper. Ademais, aquela narrativa era uma verdadeira crônica da cidade maravilhosa, rica e repleta de personagens pitorescos, todos eles frequentadores assíduos das mais simplórias, brejeiras e cariocas páginas policiais.

A noção do tempo decorrido naquela tarde só me veio quando eu cheguei no ponto de ônibus, voltando pra casa. Já era quase noite e, enquanto eu esperava a condução, rememorava os bons momentos de há pouco. Bebemos juntos, eu, o mestre José Louzeiro e sua esposa, uma jarra inteira de suco de caju, acompanhada de salgadinhos de queijo, bolo de laranja e uns canapés deliciosos que eu nem sei do que eram. O casal, daqueles que completam um pro outro as datas e os nomes momentaneamente esquecidos, foi uma nota a parte. Ela não ficava a um milímetro sequer da sua inteligência, talento e generosidade. Uma mulher de uma cultura e educação tal que não havia assunto na nossa conversa que ela não dominasse à altura ou mesmo mais do que o mestre.

Trabalhando de dia e estudando de noite o aluno tem de administrar bem o seu tempo. Eu não era muito bom nisso, mas excepcionalmente ainda havia alguns dias pra escrever aquela entrevista. Foi então que a minha sorte sussurrou para mim e, logo que surgiu um tempinho livre, eu tratei de ir ouvir a fita cassete pra começar a mapear o roteiro e os tópicos principais. Digo sorte porque nesse exato momento eu me dei conta de que o gravador não tinha registrado nada da nossa conversa. Algum problema deve ter dado na fita, pois que ela estava intacta, no início do carretel, como se não tivesse sido usada. Pra dizer que não tinha nada gravado, havia uma frase com a minha voz que dizia “teste, 123, teste...” E nada mais.

Um desespero considerável estremeceu em mim e, depois de tentar sem êxito recuperar alguma gravação, eu decidi começar a escrever com o que eu tinha de memória mesmo. Era o único jeito.

Algumas datas e títulos que eu tinha anotado, tratei de conferir tudo com o Renê. Ele riu quando eu contei da pane do gravador e disse, claro, que ia me ajudar no que fosse possível. Depois jurou que não ia contar nada pro Louzeiro, mesmo apostando que ele ia dar boas risadas com o fato.

O trabalho, por fim, até que ficou bom. Tirei uma nota alta com ele e a turma gostou da exposição eu fiz. O professor elogiou demais a pessoa que eu escolhi e durante a aula disse que, na nossa vida profissional, ainda teríamos a sorte de presenciar muitas outras entrevistas que iriam enriquecer a nossa cultura e o nosso aprendizado. Que era pra gente aproveitar bem essas ocasiões.

 

Essa tarde que passei com o mestre José Louzeiro jamais deixou de estar presente na minha vida. Foi a primeira vez que eu me senti um jornalista de verdade. Talvez pela amistosa e respeitosa acolhida que tive; talvez pela aula de conhecimento e simplicidade que me deu aquele casal, o fato é que, na minha memória, eu volto àquela sala várias vezes, para desfrutar renovadamente tudo que vivi.

Finalmente, quero dedicar essa crônica a um jovem amigo, futuro jornalista, que publicou nesta semana a sua primeira matéria, ainda como estagiário – um foca –, em um grande jornal do Rio de Janeiro.

Ao Danilo o meu abraço e minha torcida.

 


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Tia Bebel

 

Eu já cortava o cabelo no salão da Dona Rita há um bom tempo. Era perto de onde eu pegava o ônibus para ir pro trabalho e minha mãe gostava muito da proprietária, amiga dela de longa data.

Uma certa ocasião eu resolvi que, além de cortar o cabelo, iria pedir pra aparar a barba. Normalmente eu fazia isso em casa mesmo, mas dava um certo trabalho manter os fios sempre do mesmo comprimento, ficar mirando a altura no espelho, equilibrando os lados do rosto, a altura, a simetria. Era um trabalhão.

Então, naquele dia, depois de cortar o cabelo a moça passou a cuidar da barba, a meu pedido. Me perguntou como eu queria e eu disse que era só aparar, alertando para que os dois lados ficassem minimamente iguais. Para que ela ficasse calma, pois que nunca tinha trabalhado com barba, eu disse no final das recomendações que não era nada muito complicado, que era só ir aparando.

Mas a minha surpresa foi grande naquela tarde. No momento em que ela me perguntou se estava tudo ok, dando por terminado o trabalho, eu levantei os olhos e vi um rosto muito estranho no espelho. Só depois de algum tempo fui descobrir que a tal estranheza era que ela tinha feito uma divisão entre a barba e o cabelo, deixando um espaço de uns dois centímetros entre um e outro. Nem sei como eu não percebi aquilo a tempo, mas o fato é que ela raspou com uma lâmina aquela região e a barba acabava num lugar, aí vinha um pedaço liso de rosto e depois começava o cabelo. Se não fosse em mim eu juro que era até o caso de dar umas boas risadas diante daquela cara alongada que até parecia um personagem de gibi.

Assim que se chegou pra perto da minha cadeira a Dona Rita já veio dizendo impropérios pra coitada da cabeleireira.

– Menina, o que você fez? Olha essa barba longe do cabelo. Você nunca viu que eles se juntam? Porque raios você foi raspar aqui dos lados? Minha nossa. O que eu vou fazer agora? Olha o moço como ficou! Parece que o rosto dele caiu do resto da cabeça e se deslocou pra baixo. Tá horrível isso!

A moça saiu chorando pro fundo do salão e todas as outras colegas se aproximaram pra ver o resultado daquele rosto estranho que ela tinha acabado de esculpir. Eu sorria meio sem jeito, dizia que não tinha problema, que tinha sido um erro normal, que acontecia às vezes, mas na minha cabeça eu já tinha como certo que, ao chegar em casa, a primeira coisa que eu ia fazer era raspar toda a barba.

Eu acho que por vergonha de voltar na Dona Rita, prevendo que toda a história pudesse vir à tona de novo, o que seria ruim pra mim e também pra moça que era a protagonista do pitoresco desastre, eu decidi que iria evitar o salão da amiga da minha mãe. E foi por esta razão que, desse dia em diante, quem passou a cortar o meu cabelo foi a Tia Bebel.

A Tia Bebel era tia dos meus filhos. Na verdade era tia-avó deles. Mas todos na família a chamavam de tia, inclusive eu. Ela cortava o cabelo de quem a pedisse e gostava de cultivar aquilo como uma genuína habilidade sua, já que é praticamente unanimidade pra todo mundo que cortar cabelo é sempre algo muito complicado.

Na primeira vez que a gente marcou, enquanto ela botava o avental em mim, perguntou como eu queria o corte. Como eu não sabia muito bem como eu poderia orientá-la, comecei dizendo que, no geral, era só aparar mesmo e deixar tudo um pouco mais baixo.

A um certo momento ela perguntou se cortava acima da orelha e eu senti um arrepio por ter esquecido a parte mais importante, que não era pra deixar a orelha de fora e sim, manter o cabelo cobrindo as orelhas quase completamente. Eu devo ter dito aquilo com alguma insistência – talvez porque tenha sido a primeira vez – pois, dali em diante, sempre que a gente ia cortar a primeira coisa que ela repetia era:

– Ok, então é pra baixar um pouco todo o cabelo mas deixar as orelhas cobertas, né? É isso?

– Isso mesmo.

– Pode deixar que eu não vou cortar ali não. Fique tranquilo.

Sempre quando chegava perto daquela região eu sentia que ela tinha o maior cuidado. Cortava as pontas no entorno e nunca esquecia de me avisar que estava deixando quase todo o cabelo por cima das orelhas, conforme eu queria.

Esses avisos que menciono aqui ocorriam porque o lugar em que a gente adaptava como salão era uma varanda que ficava nos fundos da casa, dando para o quintal e, por isso, não tínhamos um espelho grande daqueles que vemos nas barbearias. Por esta razão a Tia Bebel sempre ia falando e atualizando o andamento do corte.

Por vezes eu até desconfiava se tinha exagerado naquela específica recomendação, mas ela mesma tinha aquilo como parâmetro, ou seja, que o tempo certo que o cabelo precisava de novo corte era justamente quando já estava demasiado embolado acima das orelhas. Aí ela dava uma boa olhada, dizia que estava grande, aí marcávamos o dia, quase sempre num final de semana, e eu concordava, agradecido.

Muitas vezes na vida lembrei da Tia Bebel. Principalmente quando não gostava dos cortes de cabelo que me faziam, salões afora. Nessas ocasiões eu sempre lembrava que ela caprichava como ninguém e que tínhamos todo o tempo do mundo pra aparar as pontas, corrigir os comprimentos dos fios e tudo o mais que precisasse. Era por isso que o meu cabelo sempre ficava impecável.

Um adendo pitoresco foi que, depois de alguns anos, quando a reencontrei, a Tia Bebel pôde finalmente me falar sobre o que na verdade a afligia naquelas nossas sessões capilares. Nessa ocasião, eu já não trazia o cabelo cobrindo as orelhas e o corte atual era bem diferente do daquela época, como tudo na moda. Ela então reparou o comprimento novo, olhou com atenção os dois lados da cabeça e suspirou:

– Eu achava que você tinha algum defeito na orelha. Por isso que insistia tanto pra que eu não cortasse o cabelo curto ali, acima – e fez um gesto com os dedos imitando o abrir e fechar da tesoura.

– Sério? Eu insistia tanto assim?

– Sim. Eu ficava em pânico com aquilo. Achava que tinha alguma coisa errada com as suas orelhas, ou com uma delas. Agora, olhando assim de perto, as duas, vejo que não têm nada de anormal nelas. Que bom. Fico aliviada. De verdade.

E assim ficamos ali um tempo, rindo e falando de cabelos, de cortes e orelhas defeituosas nesse mundo de meu Deus.