Eu já cortava
o cabelo no salão da Dona Rita há um bom tempo. Era perto de onde eu pegava o
ônibus para ir pro trabalho e minha mãe gostava muito da proprietária, amiga
dela de longa data.
Uma certa
ocasião eu resolvi que, além de cortar o cabelo, iria pedir pra aparar a barba.
Normalmente eu fazia isso em casa mesmo, mas dava um certo trabalho manter os
fios sempre do mesmo comprimento, ficar mirando a altura no espelho,
equilibrando os lados do rosto, a altura, a simetria. Era um trabalhão.
Então, naquele
dia, depois de cortar o cabelo a moça passou a cuidar da barba, a meu pedido. Me perguntou
como eu queria e eu disse que era só aparar, alertando para que os dois lados
ficassem minimamente iguais. Para que ela ficasse calma, pois que nunca tinha
trabalhado com barba, eu disse no final das recomendações que não era nada
muito complicado, que era só ir aparando.
Mas a minha
surpresa foi grande naquela tarde. No momento em que ela me perguntou se estava
tudo ok, dando por terminado o trabalho, eu levantei os olhos e vi um rosto
muito estranho no espelho. Só depois de algum tempo fui descobrir que a tal
estranheza era que ela tinha feito uma divisão entre a barba e o cabelo,
deixando um espaço de uns dois centímetros entre um e outro. Nem sei como eu
não percebi aquilo a tempo, mas o fato é que ela raspou com uma lâmina aquela
região e a barba acabava num lugar, aí vinha um pedaço liso de rosto e depois
começava o cabelo. Se não fosse em mim eu juro que era até o caso de dar umas
boas risadas diante daquela cara alongada que até parecia um personagem de gibi.
Assim que se
chegou pra perto da minha cadeira a Dona Rita já veio dizendo impropérios pra
coitada da cabeleireira.
– Menina, o
que você fez? Olha essa barba longe do cabelo. Você nunca viu que eles se
juntam? Porque raios você foi raspar aqui dos lados? Minha nossa. O que eu vou
fazer agora? Olha o moço como ficou! Parece que o rosto dele caiu do resto da
cabeça e se deslocou pra baixo. Tá horrível isso!
A moça saiu
chorando pro fundo do salão e todas as outras colegas se aproximaram pra ver o
resultado daquele rosto estranho que ela tinha acabado de esculpir. Eu sorria
meio sem jeito, dizia que não tinha problema, que tinha sido um erro normal,
que acontecia às vezes, mas na minha cabeça eu já tinha como certo que, ao
chegar em casa, a primeira coisa que eu ia fazer era raspar toda a barba.
Eu acho que
por vergonha de voltar na Dona Rita, prevendo que toda a história pudesse vir à
tona de novo, o que seria ruim pra mim e também pra moça que era a protagonista
do pitoresco desastre, eu decidi que iria evitar o salão da amiga da minha mãe.
E foi por esta razão que, desse dia em diante, quem passou a cortar o meu
cabelo foi a Tia Bebel.
A Tia Bebel
era tia dos meus filhos. Na verdade era tia-avó deles. Mas todos na família a
chamavam de tia, inclusive eu. Ela cortava o cabelo de quem a pedisse e gostava
de cultivar aquilo como uma genuína habilidade sua, já que é praticamente
unanimidade pra todo mundo que cortar cabelo é sempre algo muito complicado.
Na primeira
vez que a gente marcou, enquanto ela botava o avental em mim, perguntou como eu
queria o corte. Como eu não sabia muito bem como eu poderia orientá-la, comecei
dizendo que, no geral, era só aparar mesmo e deixar tudo um pouco mais baixo.
A um certo momento
ela perguntou se cortava acima da orelha e eu senti um arrepio por ter
esquecido a parte mais importante, que não era pra deixar a orelha de fora e
sim, manter o cabelo cobrindo as orelhas quase completamente. Eu devo ter dito
aquilo com alguma insistência – talvez porque tenha sido a primeira vez – pois,
dali em diante, sempre que a gente ia cortar a primeira coisa que ela repetia
era:
– Ok, então é
pra baixar um pouco todo o cabelo mas deixar as orelhas cobertas, né? É isso?
– Isso mesmo.
– Pode deixar
que eu não vou cortar ali não. Fique tranquilo.
Sempre quando
chegava perto daquela região eu sentia que ela tinha o maior cuidado. Cortava
as pontas no entorno e nunca esquecia de me avisar que estava deixando quase
todo o cabelo por cima das orelhas, conforme eu queria.
Esses avisos
que menciono aqui ocorriam porque o lugar em que a gente adaptava como salão
era uma varanda que ficava nos fundos da casa, dando para o quintal e, por isso,
não tínhamos um espelho grande daqueles que vemos nas barbearias. Por esta
razão a Tia Bebel sempre ia falando e atualizando o andamento do corte.
Por vezes eu
até desconfiava se tinha exagerado naquela específica recomendação, mas ela
mesma tinha aquilo como parâmetro, ou seja, que o tempo certo que o cabelo precisava
de novo corte era justamente quando já estava demasiado embolado acima das
orelhas. Aí ela dava uma boa olhada, dizia que estava grande, aí marcávamos o
dia, quase sempre num final de semana, e eu concordava, agradecido.
Muitas vezes
na vida lembrei da Tia Bebel. Principalmente quando não gostava dos cortes de
cabelo que me faziam, salões afora. Nessas ocasiões eu sempre lembrava que ela
caprichava como ninguém e que tínhamos todo o tempo do mundo pra aparar as
pontas, corrigir os comprimentos dos fios e tudo o mais que precisasse. Era por
isso que o meu cabelo sempre ficava impecável.
Um adendo
pitoresco foi que, depois de alguns anos, quando a reencontrei, a Tia Bebel
pôde finalmente me falar sobre o que na verdade a afligia naquelas nossas sessões
capilares. Nessa ocasião, eu já não trazia o cabelo cobrindo as orelhas e o
corte atual era bem diferente do daquela época, como tudo na moda. Ela então reparou
o comprimento novo, olhou com atenção os dois lados da cabeça e suspirou:
– Eu achava
que você tinha algum defeito na orelha. Por isso que insistia tanto pra que eu
não cortasse o cabelo curto ali, acima – e fez um gesto com os dedos imitando o
abrir e fechar da tesoura.
– Sério? Eu
insistia tanto assim?
– Sim. Eu
ficava em pânico com aquilo. Achava que tinha alguma coisa errada com as suas orelhas,
ou com uma delas. Agora, olhando assim de perto, as duas, vejo que não têm nada
de anormal nelas. Que bom. Fico aliviada. De verdade.
E assim
ficamos ali um tempo, rindo e falando de cabelos, de cortes e orelhas defeituosas
nesse mundo de meu Deus.
También yo pensé que iba a suceder algo con las orejas. Me ha gustado mucho. Cómo siempre he leído con tanto placer como cuando se degusta un postre delicioso. Obrigada
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