Um dos meus
primeiros trabalhos na faculdade de jornalismo foi entrevistar uma pessoa
famosa. Se não me engano foi logo no segundo semestre do curso e, bem, morando
no Rio de Janeiro, os alunos puderam escolher todo tipo de pessoa, dentre os mais
variados matizes daquilo que se pode vir a entender como famosos, ao gosto do
freguês.
A gente tinha
liberdade pra escolher o entrevistado e, em vista de metade dos colegas estarem
rumando para o lado dos cantores, atores e jogadores de futebol, eu decidi que
ia fazer tudo pra não escolher nada daquilo.
Conforme o
aluno ia definindo o nome do personagem o professor ajudava, orientava e ia
organizando a pauta junto com cada um, alertando para os detalhes que ele iria
cobrar quando fosse avaliar o trabalho. Nesse sentido, contava muito a posição
do entrevistado e eu já estava um tanto aflito, pois tinha falado com todo
mundo sobre quem poderia ser o meu alvo e ninguém tinha me dado uma pista, um norte.
Foi então que meu
amigo Renê me fez uma proposta. Primeiro, disse que o seu indicado não era assim,
tão famoso, o tipo de pessoa que é reconhecida na rua. Mas depois assegurou que
era um sujeito muito singular e que ia ter o maior prazer em colaborar com um
futuro jornalista, no caso eu.
Assim que ele
falou o nome – José Louzeiro – eu devo ter feito uma cara de nada. Mas logo a
seguir, ele disse que se tratava do autor do livro Lúcio Flávio, que tinha
virado filme, e eu então aderi logo de pronto à sua indicação, agradecendo e
pedindo mais detalhes sobre o escritor e também jornalista.
Não havia
internet na época e, portanto, foi lendo algumas orelhas dos seus livros e algumas
reportagens sobre o filme famoso, que mencionavam outras obras suas, que eu fui
esboçando o perfil do meu escolhido.
Marcamos dali
a alguns dias a entrevista. Ele morava no bairro das Laranjeiras, perto do
Estádio do Fluminense, numa ruazinha tranquila, e o seu apartamento possuía o
maior número de livros que eu já tinha visto em um lugar que não fosse nem
biblioteca nem livraria.
Eu mandei os
abraços que o Renê tinha pedido e aproveitei para agradecer pelo assentimento
do mestre em me receber. Ele maneou a cabeça e disse que o Renê era seu chapa.
Chapa e querido amigo.
Eu tinha
levado uma boa quantidade de perguntas, todas escritas e numeradas, no meu
bloco de apuração, ferramenta indispensável a qualquer jornalista que se preze.
Acontece que o papo corria tão agradável, fluido e cheio de detalhes que eu nem
me preocupei com o roteiro prévio que, por fim, estava ali apenas pra me dar
uma certa segurança.
Além do bloco,
outra ferramenta essencial era o gravador e, por via das dúvidas, eu também
estava gravando a conversa. Então, a minha tranquilidade era tal que o mestre ia
se enveredando pelos causos da sua vida de jornalista policial, escritor e
roteirista, e não tinha o menor cabimento eu interromper. Ademais, aquela
narrativa era uma verdadeira crônica da cidade maravilhosa, rica e repleta de
personagens pitorescos, todos eles frequentadores assíduos das mais simplórias,
brejeiras e cariocas páginas policiais.
A noção do
tempo decorrido naquela tarde só me veio quando eu cheguei no ponto de ônibus,
voltando pra casa. Já era quase noite e, enquanto eu esperava a condução,
rememorava os bons momentos de há pouco. Bebemos juntos, eu, o mestre José
Louzeiro e sua esposa, uma jarra inteira de suco de caju, acompanhada de
salgadinhos de queijo, bolo de laranja e uns canapés deliciosos que eu nem sei
do que eram. O casal, daqueles que completam um pro outro as datas e os nomes
momentaneamente esquecidos, foi uma nota a parte. Ela não ficava a um milímetro
sequer da sua inteligência, talento e generosidade. Uma mulher de uma cultura e
educação tal que não havia assunto na nossa conversa que ela não dominasse à
altura ou mesmo mais do que o mestre.
Trabalhando de
dia e estudando de noite o aluno tem de administrar bem o seu tempo. Eu não era
muito bom nisso, mas excepcionalmente ainda havia alguns dias pra escrever aquela
entrevista. Foi então que a minha sorte sussurrou para mim e, logo que surgiu um
tempinho livre, eu tratei de ir ouvir a fita cassete pra começar a mapear o
roteiro e os tópicos principais. Digo sorte porque nesse exato momento eu me
dei conta de que o gravador não tinha registrado nada da nossa conversa. Algum
problema deve ter dado na fita, pois que ela estava intacta, no início do
carretel, como se não tivesse sido usada. Pra dizer que não tinha nada gravado,
havia uma frase com a minha voz que dizia “teste, 123, teste...” E nada mais.
Um desespero
considerável estremeceu em mim e, depois de tentar sem êxito recuperar alguma
gravação, eu decidi começar a escrever com o que eu tinha de memória mesmo. Era
o único jeito.
Algumas datas
e títulos que eu tinha anotado, tratei de conferir tudo com o Renê. Ele riu
quando eu contei da pane do gravador e disse, claro, que ia me ajudar no que
fosse possível. Depois jurou que não ia contar nada pro Louzeiro, mesmo
apostando que ele ia dar boas risadas com o fato.
O trabalho,
por fim, até que ficou bom. Tirei uma nota alta com ele e a turma gostou da
exposição eu fiz. O professor elogiou demais a pessoa que eu escolhi e durante
a aula disse que, na nossa vida profissional, ainda teríamos a sorte de
presenciar muitas outras entrevistas que iriam enriquecer a nossa cultura e o
nosso aprendizado. Que era pra gente aproveitar bem essas ocasiões.
Essa tarde que
passei com o mestre José Louzeiro jamais deixou de estar presente na minha
vida. Foi a primeira vez que eu me senti um jornalista de verdade. Talvez pela amistosa
e respeitosa acolhida que tive; talvez pela aula de conhecimento e simplicidade
que me deu aquele casal, o fato é que, na minha memória, eu volto àquela sala várias vezes,
para desfrutar renovadamente tudo que vivi.
Finalmente,
quero dedicar essa crônica a um jovem amigo, futuro jornalista, que publicou
nesta semana a sua primeira matéria, ainda como estagiário – um foca –, em um
grande jornal do Rio de Janeiro.
Ao Danilo o
meu abraço e minha torcida.
muito amoroso!
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