Procurando nos
bolsos onde teria enfiado o papelzinho com o número da sala do médico, Sales
resolveu que seria melhor perguntar logo ao ascensorista, um português mocinho,
com ares de simpatia. Já já chega no andar e ele teria de sair do elevador sem
aquela informação final, a procurar de porta em porta.
– Sala 507, senhoire
– respondeu prontamente o rapaz com seu sotaque luso.
Agradecido, o
homem logo achou o seu destino e se pôs à espera de ser chamado. Na sala só
havia ele e uma senhora, que logo saiu acompanhada do marido, provavelmente o
paciente anterior.
A moça então
perguntou se ele tinha ficha.
– Tenho duas,
uma de 30 e outra de 25 anos. Ah, e um neto também, apesar de eu ter essa
aparência jovelina.
– Senhor, eu
perguntei se o senhor tem ficha aqui no consultório.
– Ah, sim.
Quer dizer, não. Não tenho ficha aqui.
Rapidamente
Sales sacou os documentos da carteira, abrindo a bolsinha que trazia atada à
cintura e entregou à atendente. Em poucos minutos o doutor veio chamá-lo e
ambos entraram na sala de consulta.
– Pois então o
senhor quer fazer terapia?
– Doutor, na
verdade eu não entendo muito desse assunto. Mas eu tenho vários amigos que
fazem, sabe? Então, como o sepulcro morreu de velho, eu acho que não
custa fazer uma tentação e ver se a coisa improcede de algumas
formas.
– Me fale um
pouco como é o seu dia a dia, a sua rotina, o seu trabalho, sua família.
– É aquela
coisa, né doutor, pobrema todo mundo tem, o sarcástico da vida é femigerar
sempre que seja possível. Na batuta do dia a dia, uns vão bens e outros
vão indo catando as cavacas da vida. Eu sou casado há muito tempo, com a
mesma congenente, diga-se de passado, e toda a minha vida
trabalhei como assessor geral do vereador Nelson Pipoka, conhecido eleutéricamente
como Seu Pipo. Ele inmendava os mandados nos anos e eu ia com ele
de atiracolo.
– Sei –
balbuciou o médico.
– Mas doutor,
eu vou lhe contar uma coisa que o senhor não vai fazer um enorme disforço
pra disacreditar se eu estou faltando com a mentira ou não. Bem, pode
ser vice-versa também, dependendo do traduzir dos fatos de cada um. Veja bem,
eu tenho o maior amor por mim mesmo. Sou o tipo de pessoa que lhe ama sempre, a
todo momento. E eu sinto, veja bem, eu sinto que as pessoas também me amam-me a
mim e é uma coisa muito de mim, do meu espírito. É assim, como se diz, uma coisa em nata. Acho que é assim que fala. E por que que eu sei disso? Aí é que está o ocaso
hemomérico das coisas. Posso até contar os detalhes: por exemplo, eu gosto de caminhar na beira-mar,
ali na orla, onde tem o mar. O senhor não tem ideia de quantas mulheres olham
pra mim. O tempo todo. Eu vou andando e elas vão passando, e ficam me olhando, olhando mesmo,
sem piscar. Algumas dão aquele sorrisinho degênero, deslavando a própria
diafrasia e eu até finjo que não vejo. Mas eu vejo.
– O senhor vê!
– Assim, e
isso é algo repentitivo, ou sejam, se repetem supletivamente, se
é que o senhor me entende.
– Se eu
entendo? Uhh!
– Na praia,
quando eu entro na água, elas entram atrás de mim. Largam até os maridos
pra ficar perto, mergulhando próxima da minha pessoa. Aí, quer ver quando eu
vou jogar tênis na quadra de areia, acho que é briti tênis, ou algo
assim, não sei muito bem. Cara, quer dizer, doutor, as meninas que ficam ali
assistindo os jogos chegam a aplaudir as minhas jogadas. Tem gente que joga
muito bem lá, mas eu sinto que sou o centro do galáctico ali, entende? É
uma coisa paradigmática, estrorrombólica mesmo, em nível externo. Só estando lá
pra ver. E eu não posso me furdar de narrar que no supermercado é algo ainda mais
de implacar. Pois não só as clientes, mas também as moças da padaria, dos
laraticínios, as moças do caixa, olha, batata, elas dão um jeito de estarem perto de
mim aonde eu vou, pelas corredeiras e pelas glândolas, sabe? É uma coisa muito abismótica
pra mim, mesmo eu estando assim, já acostumado com toda essa paparação. No fundo eu me sinto assim, tipo seguido por aqueles caras que tiram fotos dos famosos, os paparatos. Então, é assim o meu cotindiano diário.
Depois de um
tempo anotando, o médico fechou o caderninho e tirou os óculos bem devagar. A seguir, passou as costas da mão pela extensão da própria testa e ficou olhando pro paciente, como
que esperando o desfecho daquilo tudo.
– Então
doutor, queria saber agora o que o senhor acha. Qual afinal o seu pernóstico. Se eu preciso fazer as tais sessões
de análise ou se eu já sou, protóticamente, uma pessoa curada, inerente de
terapias e surriolada dessas coisas daí.
– Olha,
realmente, na minha humilde opinião, o senhor não precisa fazer análise alguma.
Como o senhor mesmo disse, o caso aqui é de uma pessoa de bem com a vida,
adorada por todos, com boa autoestima, pra dizer o mínimo e, enfim... se eu
fosse lhe receitar alguma coisa, não propriamente um remédio, mas um sortilégio,
de uso pra toda a vida, eu lhe diria pra comprar um calepino. Isso,
ca-le-pi-no. E é pro senhor fazer uso dele indiscriminadamente, o máximo que o
senhor puder, como uma companhia diária, pois ele só vai lhe trazer benefícios e, ao
mesmo tempo, por não ter qualquer contraindicação, não causará qualquer efeito
colateral. Anota aí, Calepino. Uma boa tarde pro senhor, viu? E não precisa
pagar por esse atendimento. Não mesmo! Eu decidi que vou contar tudinho pra um
amigo meu que tem um blog só de crônicas e ele vai adorar os detalhes dessa,
digamos, consulta. Um abraço e vá com Deus.
E o médico
ficou ali paralisado, com a maçaneta na mão, depois de abrir a porta e tentar analisar,
incrédulo, o Sales indo embora.