Eu tinha 18
anos e estava na fila pra tirar a famigerada “carteira” de motorista. Friso
carteira porque carta, como dizem os paulistas, é aquele troço que antigamente a
gente mandava pelo correio, ou então aqueles cartões que compõem os baralhos.
Pra identificação nos clubes, nas associações, nos grêmios, no plano de saúde,
no local de trabalho, é tudo carteira mesmo, como é o caso da carteira de
motorista. E não carta!
Feito este
adendo, puramente bairrista, senão anedótico, retomo que eu estava na fila
esperando pela aplicação do teste psicotécnico, que era uma das provas que
compunham o conjunto de exames para os aspirantes a condutores de veículos. Pois
então, além da prova de direção, na qual o fiscal ia sentado no banco ao lado
do motorista, a gente tinha uma prova de reflexo, outra de concentração e
memória, outra de capacidade motora geral e uma de conhecimento das placas de
trânsito e das faixas, aquelas que aparecem pintadas nas vias.
De todas
essas, o teste psicotécnico era considerado o mais tranquilo. Tanto que a
psicóloga começou falando exatamente dessa tranquilidade, que favoreceria o
candidato, e que o teste tinha por finalidade verificar principalmente o
raciocínio e a personalidade dos futuros motoristas.
Talvez esse
tenha sido o erro dela, pois que, nessa sua explanação inicial, sublinhando a
facilidade e a simplicidade do teste, a psicóloga, pra deixar todos nós à
vontade, fez uma graça:
– O teste é
muito, muito simples. Só não passa mesmo flamenguista. Quem torce pro Flamengo a
gente aqui não aprova de jeito nenhum – e apontou pra um rapaz, sentado no
fundo da sala, que vestia uma sonora camisa daquele time.
A turma toda
riu e se virou pro jovem, fazendo piada ou invocando algum incentivo na direção
dele. Mas eu senti, não sei explicar a razão, que ele ficou um tanto nervoso
com aquilo. Nervoso e incomodado.
– Eu sei que
todo mundo fala que, nesses testes psicotécnicos, a pessoa não pode esquecer de
desenhar o chão, o solo, quando for desenhar qualquer coisa. Mas isso é puro
folclore, gente. Tem várias outras questões que os psicólogos analisam e,
enfim, façam a prova como a consciência de vocês mandar, pois é ela que vai ser
avaliada aqui e não se a pessoa desenhou ou não o chão.
Ela disse isso
e, em seguida, lembro que ficou um silêncio estranho na sala.
Essa coisa de
desenhar o chão era algo muito comentado quando o assunto era teste
psicotécnico. Todo mundo só falava nisso, alertando que aquela falta era o que
realmente definia se a pessoa ia ser aprovada ou não. O que nos deixou ainda
mais tranquilos foi o fato de ela explicar tudo, tirar todas as dúvidas, pedir que
a gente tivesse calma e concentração nas questões e pronto. Ao final ela, de
novo, lembrou que o único ali que corria algum risco era o garoto flamenguista,
e riu, acenando na sua direção. Ele, por sua vez, já estava de boa, e deu até
um sorrisinho pra psicóloga, fazendo o sinal de positivo com o polegar.
Depois da
prova, a turma estava toda do lado de fora da sala. Cada um ia terminando e se
juntava aos outros no saguão e ali a gente ia esperar pelo resultado, que vinha
através de uma declaração, um protocolo, que trazia o nosso nome e a palavra
aprovado, carimbada no alto da ficha.
A cada nome
que a psicóloga chamava a gente esperava que fosse o do rapaz com a camisa do
flamengo. Todos nós já estávamos assim, aflitos, com a brincadeira de há pouco e
torcendo pra que ela não tivesse atrapalhado o desempenho do pobre. Mais uma
vez eu tive a impressão de que havia algum nervosismo nele, durante aquela chamada
nominal.
A lista ia
avançando, os nomes sendo anunciados e as pessoas, uma a uma, iam lá na frente
buscar o seu protocolo. A um certo momento a psicóloga pegou a última prova,
apertou contra o peito e disse:
– Só teve um
único reprovado hoje. Infelizmente. Foi o Alexandre de tal...
Era o
flamenguista!
Um tremendo
mal-estar tomou conta de todo mundo. A moça não sabia onde enfiar a cara e a
gente só lembrava da brincadeira. Todos nós estávamos atordoados, cada um mais
sem jeito que o outro. O pensamento geral é de que qualquer um poderia ser
reprovado, menos aquele rapaz. Parecia que ela tinha feito de propósito, mesmo naquele
momento, em que ela justificava que era uma banca que corrigia as provas e que o
trabalho dela era só aplicar os testes. O rapaz, cabisbaixo, só balançava a
cabeça e passava as mãos na nuca, andando de um lado pro outro.
Depois de
indicar o caminho da secretaria e aconselhar que ele fizesse uma nova inscrição
pra um outro teste, a psicóloga jurou ao pequeno grupo, que ainda restava ali
na frente da sala, que nunca mais ia fazer piada com a prova ou com qualquer
candidato. Constrangida, avaliou que tinha sido uma coisa horrível o que ela
fez e que o resultado de toda aquela situação tinha sido muito diferente do que
ela esperava.
Na saída do
Detran eu me juntei a um grupo que foi se formando a caminho do ponto de
ônibus. Claro que, a essa altura, toda a história do rapaz, a princípio
trágica, já tinha virado comédia entre nós, o que é normal depois de um
acontecimento como aquele.
Então, em meio
aos mais variados comentários, alguém disse:
– Sabe qual é
a lição que fica dessa manhã, pessoal? É que a gente tem de avisar pra todo
mundo que vai fazer esse teste psicotécnico, pra não ir com a camisa do
Flamengo. É uma fria essa camisa. A pessoa não passa de jeito nenhum.
Sentindo que a
galhofa ia longe, um outro acrescentou:
– Verdade. Não
tem nada de desenhar o chão, o horizonte, nada. A questão é ver de qual time é
a camisa que o cara veste pra fazer a prova. Se for do Flamengo, já era.
– E a
professora ainda tirou uma de constrangida com a reprovação dele. Vocês viram? Tudo
mentira! Tudo encenação dela.
– É mesmo. Nem
fingir ela sabe. Péssima atriz. O que ela fez não tem perdão! – disse uma
menina, puxando a fila de mais risos.
– Ainda por
cima, deve ser vascaína aquela mocreia – arrematou um baixinho, sorrateiro.
E todos nós ficamos
ali, sentenciando a psicóloga cruel e dando boas risadas, até o nosso ônibus
chegar.
Neste blog eu optei por aceitar comentários também de pessoas que não fossem identificadas através de contas do Google. Achei que seria uma imposição desnecessária. Só que, com isso, eu fico sem saber quem comentou. O que peço, pois, é que as pessoas ponham seus nomes no final do comentário. Eu agradeço. Anderson
ResponderExcluirE você já era flamenguista naquele tempo?
ResponderExcluirPois é, eu ando um
ResponderExcluirPouco consternado com
a torcida do Flamengo, parece que o Flamengo deixou de ser um
time de futebol pra virar uma vaquinha pastando em horta alheia, ou apanha de vara ou o dono da horta solta a cachorrada pra afugentar pobre vaquinha! Até meu glorioso fogão tá melhor que o Flamengo.