sexta-feira, 28 de abril de 2023

Exame Psicotécnico


Eu tinha 18 anos e estava na fila pra tirar a famigerada “carteira” de motorista. Friso carteira porque carta, como dizem os paulistas, é aquele troço que antigamente a gente mandava pelo correio, ou então aqueles cartões que compõem os baralhos. Pra identificação nos clubes, nas associações, nos grêmios, no plano de saúde, no local de trabalho, é tudo carteira mesmo, como é o caso da carteira de motorista. E não carta!

Feito este adendo, puramente bairrista, senão anedótico, retomo que eu estava na fila esperando pela aplicação do teste psicotécnico, que era uma das provas que compunham o conjunto de exames para os aspirantes a condutores de veículos. Pois então, além da prova de direção, na qual o fiscal ia sentado no banco ao lado do motorista, a gente tinha uma prova de reflexo, outra de concentração e memória, outra de capacidade motora geral e uma de conhecimento das placas de trânsito e das faixas, aquelas que aparecem pintadas nas vias.

De todas essas, o teste psicotécnico era considerado o mais tranquilo. Tanto que a psicóloga começou falando exatamente dessa tranquilidade, que favoreceria o candidato, e que o teste tinha por finalidade verificar principalmente o raciocínio e a personalidade dos futuros motoristas.

Talvez esse tenha sido o erro dela, pois que, nessa sua explanação inicial, sublinhando a facilidade e a simplicidade do teste, a psicóloga, pra deixar todos nós à vontade, fez uma graça:

– O teste é muito, muito simples. Só não passa mesmo flamenguista. Quem torce pro Flamengo a gente aqui não aprova de jeito nenhum – e apontou pra um rapaz, sentado no fundo da sala, que vestia uma sonora camisa daquele time.

A turma toda riu e se virou pro jovem, fazendo piada ou invocando algum incentivo na direção dele. Mas eu senti, não sei explicar a razão, que ele ficou um tanto nervoso com aquilo. Nervoso e incomodado.

– Eu sei que todo mundo fala que, nesses testes psicotécnicos, a pessoa não pode esquecer de desenhar o chão, o solo, quando for desenhar qualquer coisa. Mas isso é puro folclore, gente. Tem várias outras questões que os psicólogos analisam e, enfim, façam a prova como a consciência de vocês mandar, pois é ela que vai ser avaliada aqui e não se a pessoa desenhou ou não o chão.

Ela disse isso e, em seguida, lembro que ficou um silêncio estranho na sala.

Essa coisa de desenhar o chão era algo muito comentado quando o assunto era teste psicotécnico. Todo mundo só falava nisso, alertando que aquela falta era o que realmente definia se a pessoa ia ser aprovada ou não. O que nos deixou ainda mais tranquilos foi o fato de ela explicar tudo, tirar todas as dúvidas, pedir que a gente tivesse calma e concentração nas questões e pronto. Ao final ela, de novo, lembrou que o único ali que corria algum risco era o garoto flamenguista, e riu, acenando na sua direção. Ele, por sua vez, já estava de boa, e deu até um sorrisinho pra psicóloga, fazendo o sinal de positivo com o polegar.

Depois da prova, a turma estava toda do lado de fora da sala. Cada um ia terminando e se juntava aos outros no saguão e ali a gente ia esperar pelo resultado, que vinha através de uma declaração, um protocolo, que trazia o nosso nome e a palavra aprovado, carimbada no alto da ficha.

A cada nome que a psicóloga chamava a gente esperava que fosse o do rapaz com a camisa do flamengo. Todos nós já estávamos assim, aflitos, com a brincadeira de há pouco e torcendo pra que ela não tivesse atrapalhado o desempenho do pobre. Mais uma vez eu tive a impressão de que havia algum nervosismo nele, durante aquela chamada nominal.

A lista ia avançando, os nomes sendo anunciados e as pessoas, uma a uma, iam lá na frente buscar o seu protocolo. A um certo momento a psicóloga pegou a última prova, apertou contra o peito e disse:

– Só teve um único reprovado hoje. Infelizmente. Foi o Alexandre de tal...

Era o flamenguista!

Um tremendo mal-estar tomou conta de todo mundo. A moça não sabia onde enfiar a cara e a gente só lembrava da brincadeira. Todos nós estávamos atordoados, cada um mais sem jeito que o outro. O pensamento geral é de que qualquer um poderia ser reprovado, menos aquele rapaz. Parecia que ela tinha feito de propósito, mesmo naquele momento, em que ela justificava que era uma banca que corrigia as provas e que o trabalho dela era só aplicar os testes. O rapaz, cabisbaixo, só balançava a cabeça e passava as mãos na nuca, andando de um lado pro outro.

Depois de indicar o caminho da secretaria e aconselhar que ele fizesse uma nova inscrição pra um outro teste, a psicóloga jurou ao pequeno grupo, que ainda restava ali na frente da sala, que nunca mais ia fazer piada com a prova ou com qualquer candidato. Constrangida, avaliou que tinha sido uma coisa horrível o que ela fez e que o resultado de toda aquela situação tinha sido muito diferente do que ela esperava.

Na saída do Detran eu me juntei a um grupo que foi se formando a caminho do ponto de ônibus. Claro que, a essa altura, toda a história do rapaz, a princípio trágica, já tinha virado comédia entre nós, o que é normal depois de um acontecimento como aquele.

Então, em meio aos mais variados comentários, alguém disse:

– Sabe qual é a lição que fica dessa manhã, pessoal? É que a gente tem de avisar pra todo mundo que vai fazer esse teste psicotécnico, pra não ir com a camisa do Flamengo. É uma fria essa camisa. A pessoa não passa de jeito nenhum.

Sentindo que a galhofa ia longe, um outro acrescentou:

– Verdade. Não tem nada de desenhar o chão, o horizonte, nada. A questão é ver de qual time é a camisa que o cara veste pra fazer a prova. Se for do Flamengo, já era.

– E a professora ainda tirou uma de constrangida com a reprovação dele. Vocês viram? Tudo mentira! Tudo encenação dela.

– É mesmo. Nem fingir ela sabe. Péssima atriz. O que ela fez não tem perdão! – disse uma menina, puxando a fila de mais risos.

– Ainda por cima, deve ser vascaína aquela mocreia – arrematou um baixinho, sorrateiro.

E todos nós ficamos ali, sentenciando a psicóloga cruel e dando boas risadas, até o nosso ônibus chegar.

 

 


3 comentários:

  1. Neste blog eu optei por aceitar comentários também de pessoas que não fossem identificadas através de contas do Google. Achei que seria uma imposição desnecessária. Só que, com isso, eu fico sem saber quem comentou. O que peço, pois, é que as pessoas ponham seus nomes no final do comentário. Eu agradeço. Anderson

    ResponderExcluir
  2. Antonio Paulo D'Aquino Noronha28 de abril de 2023 às 21:39

    E você já era flamenguista naquele tempo?

    ResponderExcluir
  3. Pois é, eu ando um
    Pouco consternado com
    a torcida do Flamengo, parece que o Flamengo deixou de ser um
    time de futebol pra virar uma vaquinha pastando em horta alheia, ou apanha de vara ou o dono da horta solta a cachorrada pra afugentar pobre vaquinha! Até meu glorioso fogão tá melhor que o Flamengo.

    ResponderExcluir